quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Memórias de um Andreense

 Alexandre Takara

    

    À maneira de Machado de Assis no Soneto de Natal, Holando Lacorte se indaga: “Terei mudado eu ou mudou Santo André?” E responde: mudamos. E prova. Retorna à sua infância, vasculha suas memórias e fixa-se nas décadas de 1920 a 1940. Morava na rua Gertrudes de Lima, atrás do Primeiro Grupo Escolar, hoje, Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. A cidade de sua infância não existe mais.

    Santo André transformou-se em “palimpsesto”. Perdoem-me o palavrão, mas ele é necessário para entender o livro de Holando. Umberto Eco, em seu romance O NOME DA ROSA, explica: os “palimpsestos” eram couros de uma ovelha ou de uma cabra beneficiados para receber escrita. Os textos anteriores eram lavados, raspados e branqueados com gesso e cal para eles serem reutilizados. Textos sobrepostos duas ou três vezes. Os pergaminhos eram escassos e caros e foram utilizados no período anterior a Gutemberg. Com as novas tecnologias de radiografia, foi possível recuperar textos perdidos da antiguidade clássica greco/romana, como DE RE PUBLICA, de Cícero.

    Santo André nesse sentido é uma cidade “palimpsesto”. Camadas de memórias e de histórias superpostas  se revelam apenas às pessoas de sensibilidade, como a Holando Lacorte. Seu livro tem valor memorialístico. Aliás, ele mesmo era um “palimpsesto”, pois feito de muitas camadas superpostas de memórias e história. Nas suas caminhadas pela cidade, ele percebia o que outros não percebiam porque ele se lembrava da cidade de sua infância e de suas transformações.

    Considere-se apenas a população de Santo André. Houve um decréscimo, na década de 1950, em virtude do desmembramento em seis novos municípios e o número reduziu-se a 92 mil habitantes. O recenseamento de 1980 registrou 553.000 habitantes. A população cresceu mais de 6 vezes em 30 anos! Aconteceu em Santo André e, por extensão, no ABC, o que acontecera em outras partes do mundo: a industrialização estimulou a migração que estimulou a urbanização. No entanto, população decresce a partir de 1980 em virtude da grave crise econômica nacional e da mudança de empresas para o interior e a outros Estados, sobretudo, para Campinas e São José dos Campos.

    Em 1950, a economia transitava de rural para a urbana. Haja vista que, em 1950, em Camilópolis,  havia um cafezal e pouco adiante, um pasto que se estendia até os limites da Capital. Os prédios ganharam altura. Aliás, a construção de residências passou por três fases distintas: de tapera e madeira, para de tijolos e, hoje, para de concreto armado. Do 18º andar do Edifício Torre Di Rocco, onde moram meu filho Enzo e Gláucia, sua esposa, construído nos altiplanos da cidade, que dá de frente para o Parque Antonio Flaquer, cujas árvores parecem incorporadas ao jardim do prédio, desse andar descortina-se a cidade de Santo André, bem diferente do tempo de Holando Lacorte. Palimpsesto. E as edificações antigas ganham novas funções, a começar pelo prédio do 1º Grupo Escolar que passou a abrigar a Secretaria de Promoção Social e, agora, Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. E  o edifício da antiga Câmara Municipal à rua Alfredo Fláquer, 76, Centro, passou a abrigar a Biblioteca Municipal e, hoje, o Cursinho Singular/ Anglo Vestibulares.

    Os transeuntes, hoje, são outros, apressados, a lutar contra a pressão do tempo, bem diferentes daquela época, dos tipos populares, de caminhar mais pausado, como o guarda-noturno Leopoldo Rodrigues, forte e valente, acompanhado de seu cão policial, que fazia ronda e soprava o apito estridente para a tranquilidade dos moradores; a Nina, vendedora ambulante de verduras e legumes que fazia pregões de seus produtos; a Preta Velha que tinha o dom de curar os enfermos  com seus benzimentos e rezas; o Ismael Lobo, um dos primeiros taxistas da cidade, conduzia a dona Nina-Parteira para os serviços de parto. Ela ajudou a trazer centenas de vida a muitas famílias; a Catarina do bucho que vinha a pé das lonjuras da Vila Luzita para buscar vísceras no matadouro dos Martinelli; o Záz-Tráz, o pai-de-santo que mantinha seu centro espírita nas imediações do Cemitério de Vila Assunção;  o Tchopa, rufião que explorava o lenocínio com a própria mulher e quantos garotos lá perderam a inocência.

    Holando aponta referências que os especialistas denominam “lugares da memória”. O Cine Theatro Carlos Gomes, a Igreja Matriz, a biquinha da rua Luiz Pinto Fláquer, o Grupo Escolar, a venda dos Rossini na rua dos Napolitanos, hoje Cel. Agenor de Camargo,  a estação ferroviária, em frente da qual havia um bebedouro (de ferro) de água para animais, o que revela a permanência de traços da economia rural até a década de 1960. Outros acrescentariam que havia fábrica e comércio de sela de montagem e freios e oficinas de ferradura em cavalos. Entre esses lugares de memória, lembra-se da sua rua, Gertrudes de Lima, onde ouvia, às tardes, o chilreio de pássaros que habitavam as árvores do Grupo Escolar, que ainda hoje existem. Dos folguedos infantis, como esconde-esconde, pique, roda e boca de forno, hoje esquecidos. E lembra-se do período anterior à televisão, quando os vizinhos traziam cadeiras à calçada e estendiam os papos até às 21h30m, hora em que se recolhiam porque, no dia seguinte, tinham de trabalhar.

    Por falar em trabalho, ele evoca a Tecelagem Ipiranguinha que empregava centenas de operários. Essa fábrica pertenceu sucessivamente a Camargo, Scarpa, Boyes e Moinho Santista, mas era conhecida como Tecelagem Ipiranguinha, um dos marcos da industrialização de Santo André. Mestres, contra-mestres e alguns funcionários técnicos moravam na vila operária e nas circunvizinhanças. Santo André era subúrbio da Capital, dela tudo dependia.

    E os sons da cidade. Pela manhã, o apito, três vezes seguidos do Ipiranguinha anunciavam faltarem trinta minutos para o início do expediente. Duas vezes, quinze minutos. Ouvia-se o plac-plac dos tamancos na calçada que se misturavam com os chilreios dos pássaros. E uma vez, o apito indicava o início do trabalho.  E fechavam-se os portões. A cidade se despertava. Passos de transeuntes misturavam-se com o canto do açougueiro Boschetti que anunciava seus produtos e entoava canções da sua terra natal, Itália. “Che bella cosa uma giornata a sole”; ou “Ó dolce Napole, sole beato” ou “Quan’spunta la luna a maré chiaro...” Santo André era um pedaço da Itália. As famílias chamavam-se Rocco, Cataruzzi, Pezzolo, Spada, Martinelli, Vezzá, Bellisomi...Lacorte, Poletto, Bertolotto e centenas de outros nomes. Expressavam-se em português macarrônico. Até descendentes de japoneses tinham o nome italianado. Em vez de Takara, Takarolli. A língua portuguesa italianizava-se. Novas palavras são introduzidas: Barbêro, pizza, viareggio, fanfula, avanti... A culinária enriquecia-se.

    O italiano ingressa na literatura brasileira com Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcantara Machado. Ele escreve contos, pequenas obras primas. Personagens como Gaetaninho e Carmela se imortalizaram, além do torcedor de Palestra Itália, hoje, Palmeiras. O italiano de Alcantara Machado não era o rico que residia na Avenida Paulista ou no bairro de Higienópolis, ele preferia o operário dos bairros pobres do Brás, Bexiga e Barra Funda.

    Esses tipos eram encontradiços em Santo André. O Galuzzi, salvo engano, chamava-se Domingos. Ele trabalhava numa barbearia do Largo da Estátua, bem poderia ser o Nicolino Fior d’Amore, do Alcantara Machado. A Grazia poderia ser a tecelã Josefina que trabalhava no Ipiranguinha. Assim, Santo André era uma extensão da Capital. Gerentes, mestres, contra-mestres e alguns funcionários graduados moravam nas casas da vila operária construídas ao redor da fábrica como na rua do Sol esquina com a rua Estrela e a Marquesa de Santos e também na rua D.João VI, na travessa Marajó e travessa Lucinda e algumas no final da Rua Alfredo Fláquer, hoje, mais conhecida como a Perimetral. Tudo isso é passado, só os memorialistas se lembram. E os saudosistas.

    Santo André transformava-se. A Santo André das décadas de 1920 a 1940 tende ao esquecimento. Daí, a importância da educação patrimonial que o Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa tão bem desenvolve. Basta visitar suas dependências e contemplar as fotografias da cidade que não existe mais, apenas algumas reminiscências. Na verdade, a cidade está repleta de detalhes que os passos apressados de transeuntes não permitem perceber.  As cidades são (in)visíveis, afirmou Italo Calvino. É preciso contemplar a cidade com o olhar distraído, mas percuciente. A cidade não se revela fácil. É preciso deixar-se tomar pela cidade, deixar-se perder. E ver a cidade com outros olhos, de um flaneur, aquele que flana, caminha a esmo, passeia e sente a alma da cidade. É necessário educar o olhar.

    Um bom exemplo é o que faziam Ademir Medici e seus amigos, entre os quais me incluo, e os falecidos Philadelpho Bras e Manuel dos Santos. Caminhávamos  ao léu pela cidade, a partir da Prefeitura Municipal de Santo André. Descíamos a av. Portugal, subíamos a Campos Sales, embrenhávamo-nos pela Praça do Carmo, subíamos a Oliveira Lima até chegar ao largo da Estátua. E, depois, seguíamos a Senador Fláquer até chegar ao Museu de Santo André, onde revíamos fotografias da antiga cidade. Um trecho que se faz em dez a quinze minutos, demorávamos mais de quatro horas.

    Motivo: fazíamos a releitura da cidade. Lembrávamos da chegada do bispo Dom Marcos de Oliveira em 1953 e de Dom Cláudio Hummes  em 1975 e da proteção que ambos deram aos operários em greve nos anos de 1978 a 1980. Como a memória é feita de camadas , vieram à tona muitos fatos significativos  do passado mais remoto, hoje, esquecidos: da fundação da Liga Operária em 1907; do assassinato, em 1919, do operário Constante Castellani na Oliveira Lima em frente à fábrica Móveis Streiff; da vinda de Luiz Carlos Prestes a Santo André, na década de 1940, para apoiar o movimento sindical, cujos líderes, comunistas, foram citados, sob pseudônimo, no livro, O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado. Philadelpho Bras tentou identificá-los, mas não conseguiu, motivo de ter procurado o Prestes quando esteve em Santo André, a convite do Colégio Singular/Anglo Vestibulares, para pronunciar cinco palestras, a partir de 1984.  Prestes não se lembrava. Recordava apenas que pedira ao Jorge Amado registrá-los sob pseudônimo para proteger a identidade desses operários a fim de evitar a perseguição pelo governo de Estado Novo, de Getúlio Vargas. Quem esses operários? Miguel Guillén? Marcos Andreotti? Rolando Fratti?

    Quantas lembranças, verdadeiras aulas de História de Tempo Presente,  ou de História Nova, segundo Pierre Nora, aquela história construída pelos próprios protagonistas. Sim pelos próprios protagonistas, porquanto Manuel dos Santos foi eleito vereador, em 1947. Chegou a ser diplomado, mas não tomou posse em virtude do golpe das forças reacionárias contra os comunistas, ao tempo de Eurico Gaspar Dutra, Presidente. E Ademir Médici escreveu um livro a respeito, denominado 9 de novembro de 1947: a A Vitoria dos Candidatos de Prestes. Esse livro pertence à coleção, A Cultura e Os Trabalhadores, organizada pelo Philadelpho Bras, um cidadão com apenas Grupo Escolar incompleto e publicado com o financiamento de Fundo de Cultura da Prefeitura de Santo André, em 1999. Eles são protagonistas da História que fizeram História.

    Os três últimos parágrafos do Prefácio não constam do livro de Holando Lacorte, porque são fatos posteriores à publicação. Mas revelam a continuidade do processo histórico. História é construção. Daí a importância do Museu Dr. Octaviano Armando Gaiarsa como lugar de memória, motivo de esse espaço promover ações educativas. O livro de Lacorte poderia ser adotado como apoio didático para esse fim, uma forma de estabelecer liames entre o passado e o presente, antes que caiam no esquecimento. Porque o passado não é o que passou. É o que ficou. O passado que passou é o esquecimento, a morte. O passado que ficou são as lembranças, a vida. E Memórias de um Andreense, de Holando Lacorte, são relatos de vida de um tempo, em que a cidade e, por extensão, o ABC, davam os primeiros passos para a modernidade. Reconstruir o passado é um modo de compreender o futuro.

 

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Noventa anos!


                                                                                                           

Alexandre Takara

        Por favor, cumprimentem-me. Hoje, 4 de junho, comemoro  noventa anos de existência. Uma sensação estranha me domina: a de  estar às portas da eternidade. E do esquecimento. Ingresso na última década da minha existência. Talvez, forçando um pouquinho, passe dos cem anos. Mais tempo de vida, menos tempo de vida. Segundo a mitologia cristã, farei um breve estágio no purgatório para, depois, ingressar no céu. Minha Beatriz me conduzirá. Ao inferno, tenho certeza, não irei. Porque não cometi pecados mortais. No máximo, o furto de alguns livros na livraria durante a minha juventude. Um dia, fui flagrado e, envergonhado, nunca mais cometi esse delito.

    Quanto a contravenções penais, cometi às centenas, se não aos milhares. Ultrapassei o sinal vermelho do trânsito; joguei papel na rua, emporcalhando a cidade; blasfemei; soltei palavrão, elogiando a mãe de alguém; colei nas provas escolares. E, quando alguém cometia uma infração no trânsito, o elogiava: - aí, batuta. Quem não é contraventor? Ah! Os nossos delitos de todos os dias. Não me consta que contravenções são motivos para ser conduzido ao inferno! Nem sei se está na lista de pecados.

    Hoje, em virtude de problemas de mobilidade, dificilmente saio do meu apartamento. Deste promontório, qual navegante, contemplo as ondas encapeladas da cidade: o caminhar de gentes, miríades de falas, o ronco dos motores. Essa massa sonora invade a minha privacidade. Dela, me esquivo, plantando o meu jardim no meu latifúndio de quatro metros quadrados da varanda. A copa das mini árvores como de manjericão, orégano, salsinhas e  cebolinhas – abafa o som das ruas. Assim, posto em silêncio, leio, escrevo e sonho.  Sei o resultado: uma crônica ou um conto.

    A procura de palavras leva-me a um texto de Rubem Braga. Ou de Rubem Alves. Talvez ao Carlos Drummond de Andrade. Sei quem me aguarda na esquina para um papo:  Machado de Assis. Falamos sobre seus contos - Uns braços, Missa do Galo e Conto de Escola. Dom Casmurro me conduz, pela enésima vez, à alma tortuosa de Bentinho. Assim, vou me estimulando a criar um novo texto. Talvez uma crônica ou um conto. Ainda não tenho fôlego para escrever um romance. Um dia, quem sabe...

    Faço um levantamento de atividades que não fiz e deveria ter feito:

        1) um texto sobre a dissertação de mestrado a respeito do Museu de Santo André e a Difusão da memória cultural local que a Rosi Rampazo  defendeu  na ECA/USP. Minha omissão me incomoda;

        2) Outro silêncio me incomoda. Agora, sobre a tese de doutorado de Suzana Cecília Kleeb na Universidade Federal do ABC sobre -Metamorfoses da Sociabilidade brasileira: Estudos nas configurações territoriais da Bocaina (Vale do Paraíba, SP) e do Lago de Sobradinho (Bahia).

        3) Inseri um texto pobre (que me envergonha) sobre Dalila Teles Veras e sua fiel escudeira Maninha na administração e na promoção de ações culturais no Alpharrabio Espaço Cultural. Inclui esse texto no meu último livro – Professor, Detesto Suas Aulas! e a Reforma do Pensamento.  Elas merecem um texto mais substancioso, tanto fazem em favor da animação cultural no ABC. A região as aplaude. Elas sabem do motivo da pobreza desse texto:  ausentei-me do Alpharrabio por mais de uma década, em virtude de meus problemas de mobilidade e dores na coluna vertebral, motivo de me faltarem informações atualizadas.

       Além do meu silêncio sobre os trabalhos da Rosi Rampazo, Suzana Cecília Kleeb, Dalila e Luzia Teles Veras, gostaria de escrever uma história do Colégio Singular/Anglo Vestibulares, cujo Departamento de Cultura, embora iniciado pelos professores Flávio Alarsa e Carlos Straccia (in memoriam), eu e a Mônica Cardella demos sequência ao longo dos anos de 1985 a 2000.

    Preciso falar a respeito com Paulo Roberto De Francisco e Paolo Gamboji, diretores do Singular/Anglo, municiado de documentos, reportagens, depoimentos , fotografias, entrevistas, inclusive um TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, de uma aluna da ECA/USP sobre o Teatro Singular. Aliás, o diálogo com Paulo e Paolo tinha sido iniciado, mas foi interrompido pela pandemia de coronavírus. Precisamos retomar.

    Não podemos adiar muito a tratativa porque, conforme já exposto, ingressei, hoje, na última década da minha vida produtiva. Tenho memórias sobre o Singular/Anglo desde os primórdios, quando foi fundado em 1966 e a região do ABC ingressava na modernidade industrial com a instalação da indústria automobilística e da indústria química. Sou mais do que testemunha da História do Singular/Anglo, sou um dos protagonistas. Caso eu morra, uma fonte de informações terá se silenciado. Será uma pena porque o Sistema Singular/Anglo é um projeto pedagógico bem sucedido. Enquanto aguardo uma reunião com Paulo Roberto e Paolo, curto a trajetória da minha vida. Envelhecer é ingressar no labirinto do tempo.




    Noventa anos. Quase um século. Poucos atingem essa idade. O que aprendi de essencial ao longo da minha existência? Apenas palavras através da leitura e da escrita e de meus mestres.   Este o motivo de tornar-me professor. Sou o semeador de palavras. Sei que muitas palavras caíram  o deserto e morreram. Outras sobre o solo fértil e germinaram; cresceram  e produziram frutos.

    Nesta idade outonal, três palavras tornaram-se mais presentes no meu cotidiano: silêncio, solidão e santidade e seus fundamentos: espiritualidade, transcendência e empatia. 

    O silêncio tem vários sentidos: o do omisso que não quer envolver-se com nada. Há também o silêncio de quem protesta. Neste caso, o silêncio fala. Há palavras nesse silêncio. Há um sentido implícito no não-dito. O silêncio é a respiração das palavras. Para ouvir o silêncio, é preciso desenvolver a escuta sensível. Escutar significa estar atento para ouvir o outro. O prefixo e do verbo escutar ( como o prefixo ex do verbo exteriorizar) dá o sentido e o movimento ao verbo: de dentro para fora. É preciso estar  preparado para dentro para ouvir o outro. E estar preparado significa intersubjetividade e transpessoalidade. Assim, a escuta sensível é um trabalho sobre si mesmo – preparar-se para ouvir o outro. Então, eu sou, ao mesmo tempo, o ser-que-fala e o ser-que-escuta. Um jogo de espelhos. Assim, se estabelece a  comunicação no sentido de tornar comum um ação, um pensamento, um sentimento. E comunicação se efetiva  quando duas ou mais pessoas sabem e gostam de ouvir, sabem e gostam de ser ouvidos. Então, as pessoas atingiem um grau elevado de escuta sensível, resultante da congruência entre vivência, consciência e comunicação. Neste sentido, silêncio é comunicação.  

    Há solidão e solidão.

    A solução da loucura exclui o próximo. A solidão do misantropo  repulsa o semelhante e se fecha em si mesmo e não se comunica; A solidão do desesperado  o leva ao suicídio. Há também a solidão de cidadãos nas cidades, mineralizados na sua humanidade. O homem não foi criado para essas formas de solidão, mas tornaram-se. Para eles, a solidão equivale à tristeza e ao isolamento. 

    Tão apaixonado pela leitura, que tenho uma fortuna – uma biblioteca rica e variada que, se vender, pouco vale. Mas, lá estão as aventuras dos homens. O que deveria ter feito e não fiz?

                

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sobre nossa prosa com o menino do museu


O Menino Malino chega em Santo André... a internet faiô, e a oralidade prevaleceu... 

Com todo afeto planejamos nossa sonhada Live com Pedro, o Menino do Museu. Queríamos que todos o conhecessem, porque conhecer Pedro é conhecer a si, o povo brasileiro e sua teimosia. Na hora da Live, a internet do Crato não funcionou, ligamos para Pedro e a participação dele foi por telefone. Ainda que o áudio tenha falhado em alguns momentos, a conversa perdurou por mais de uma hora...

Pedro nos encanta não só porque criou o Museu Luiz Gonzaga aos 8 anos de idade, mas porque teima em colocar na centralidade da sua vida, a beleza da cultura do povo nordestino. Pedro traz Luiz, Pedro respeita Januário, Pedro tem a asa branca e a asa solta...

"Furaro o zóio do assum preto pra ele canta mió..." (Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, 1950)

O financiamento público não chega, o Estado fura o "zóio" continuamente do povo.  É uma chuva de faltas e uma chuva de sobras. Falta democracia, falta afeto, sobra competição e loucura por consumo, mas ele, o menino malino, ainda com essa "furadera de zóio" perene, canta, canta bonito e alto e seu canto chega em Santo André na prosa que coloca a cultura no seu lugar de centralidade, no seu lugar de dimensão simbólica.

O Velho Lua, o sanfoneiro  Gonzaga de Exu,  vai fazer 108 anos, a saudade é tamanha e o menino do Crato é puro encantamento, carrega consigo as ideias de mil Gonzagas. Gestor  cultural potente, sabido, fala como rei , fala de gestão, tem na cabeça o valor maior do afeto que deve reger nossas relações.

Enquanto as instituições vultosas e elitizadas  tem privilégios e são mantidas com leis de incentivo e  pagamentos de entrada, as ações de base comunitária e pequenos espaços ficam a mercê do tempo. O menino do museu é um desses gestores de uma pequena grande ação de valor simbólico que guarda a memória de um dos  maiores artistas brasileiro que é Luiz Gonzaga. Proseamos com o esse gestor cultural de 15 anos que sonhou com o museu do rei. Fica essa  narrativa e esse imaginário de cultura do povo pra lembrar que no fundo,  o sertanejo é um forte,  de uma sapiência única, sagaz e o menino Pedro é o futuro de tudo isso que chamamos de cultura.

Nossa live foi na oralidade, a prosa persistiu, a internet ainda não chega em todo mundo. Estamos aqui pensando como vida de viajante, quase assum preto, lembrando Gonzaguinha, lembrando de nossos ancestrais, daqueles que pegam na pedra e sabem o valor do peso de carregar a herança nordestina. Lembramos  dos cordéis até chegar na lei Aldir Blanc. Estamos ajudando no controle social na cidade do Crato.  Ainda é pouco. Estamos fora da gaiola e furam nosso "zóio", mas a gente canta e a gente quer  mais ainda! Temos que reconhecer o povo, porque sem o povo não existe cultura, Somos  MASSA, somos restos de estrelas depois da explosão.

 


Texto coletivo pensado na simbologia da cultura MASSA, por Isabel Rodrigues e por Neri Silvestre

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Desgoverno de Bolsonaro







Alexandre Takara*



Nada como digressão pelos acontecimentos recentes para analisar a política do Presidente Jair Bolsonaro. A seguir, alguns de seus pronunciamentos nas últimas três semanas, a partir dos quais, é possível deslindar algumas das linhas mestras de seus pensamentos e ações e, por que não, sua personalidade. Linhas mestras, afirmei, por força de expressão porque, em um ano e meio de gestão, ele ainda não os explicitou. Sua gestão é toda desconjuntada. Um dia, ele afirma e, no dia seguinte, nega. A seguir, alguns fatos que merecem ser analisados.

1) Ele acusou Sérgio Moro, então Ministro da Justiça e Segurança Pública, de haver condicionado a troca do comando da PF à sua indicação ao STF – Supremo Tribunal Federal. A deputada Federal, Carla Zambelli, pede a Moro entregar a Superintendência da Polícia Federal do Rio de Janeiro ao Bolsonaro e ela interferirá junto ao Presidente para designá-lo como membro do STF – Supremo Tribunal Federal – a que Moro declara: Não estou à venda.”

2) O vazio de ideias no discurso pronunciado por Bolsonaro na sua estreia em Davos, Suíça, em 2019. Ele não defendeu teses nem apresentou propostas. Seu discurso durou apenas 6 minutos, mesmo assim reduzidos aos salamaleques. Foi duramente criticado pela imprensa. Além do mais, sua política de relações exteriores é de ofensas e críticas, inclusive a nações tradicionalmente amigas, como a França. Apenas exalta a Donald Trump, presidente dos EUA, um populista da direita, seu paradigma de governo. Risível a tentativa de indicar seu filho, Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo Estado de São Paulo a embaixador do Brasil nos EUA, simplesmente por lá ter vivido uma temporada, saber inglês, cozinhar hamburgueres e sem qualquer preparo em relações exteriores.

3) Interferiu no processo em favor da defesa de seus filhos e de políticos, seus apoiadores.  Sergio Moro, ex-Ministro da Justiça e Segurança, em depoimento à Procuradoria Geral da República, relata um diálogo que manteve com o Presidente: “Moro, você tem 27 superintendências (da Polícia Federal), eu quero apenas uma, a do Rio (de Janeiro).” Por que desta insistência?  Proteger seu filho Flávio de investigações policiais, na época em que era Deputado Estadual pelo Estado do Rio de Janeiro?  Seu homem de confiança e amigo da família, Fabrício Queiroz, cobrava “rachadinha”, um percentual de proventos de seus assessores lotados na Assembleia Legislativa.

4) Demitiu, em plena crise de pandemia, Luiz Henrique Mandetta, Ministro da Saúde, prestigiado pela OMS – Organização Mundial da Saúde e pelos diretores do seu Ministério pelos relevantes serviços prestados no combate à pandemia de coronavírus. Pesquisas de Datafolha revelaram que Mandetta tinha mais prestígio do que ele: 76% em favor do Ministro e 33% do Presidente no início do mês de abril. E 64% dos pesquisados reprovaram a demissão. Uma das mais prestigiadas revistas médicas do mundo, Lancet (Inglaterra, numa das edições de maio), em seu editorial, afirma que a maior ameaça à resposta do Brasil aos desafios de covid-19 é o presidente Jair Bolsonaro. “Ele não apenas continua a semear confusão, desrespeitando abertamente as medidas sensatas de distanciamento e bloqueio físico trazidos pelos governadores estaduais e prefeitos, mas também perdeu dois ministros importantes – Mandetta, de Saúde e Moro, da Justiça”.




5) Aproximou-se e negocia apoio político com o Centrão, cuja prática fundamenta-se no “é dando que se recebe” – prática da velha política que Bolsonaro tanto combateu durante a campanha eleitoral de 2018. Desse grupo, pertenceram os deputados federais, Roberto Jefferson (PTB) e Waldemar da Costa Netto (PR), banidos da Câmara Federal  pela Operação Mensalão, conduzida pelo STF. Além deles, foram cassados mais dez deputados federais, de diversos partidos.

6) Indicou o delegado Alexandre Ramagem, próximo da família Bolsonaro, para o comando da Polícia Federal e foi vetado pelo Ministro, do STF, Alexandre Moraes, porquanto feria os princípios da moralidade, impessoalidade e interesse público, uma vez que o objetivo dele era interferir na Polícia Federal para colher informações sigilosas de investigações para proteger seus filhos, motivo de Celso de Mello, do STF, autorizar investigação a respeito; É grave a suspeita de que Bolsonaro quer o controle sobre o aparato da Polícia Federal no Estado de Rio de Janeiro para a proteção de seus filhos.  

7) Bolsonaro perde apoio dos que o elegeram, como o MBL – Movimento Brasil Livre. Um de seus líderes, Kim Kataguiri, hoje deputado federal, acusa o Presidente de ter cometido “estelionato eleitoral” , por ter prometido, durante a campanha política de 2018, o combate à corrupção; e a Deputada Federal, Joice Hasselmann, antes do grupo do Presidente, agora o acusa de crime de responsabilidade por falsidade ideológica;

8) Uma pergunta ainda aguarda resposta: por que Bolsonaro se recusa a revelar o resultado dos exames médicos, a que se submetera, no Hospital do Exército, após sua viagem aos EUA, em março, acompanhado de 22 assessores, todos, ou quase todos, vítimas da pandemia de coronavírus e ele, o único ileso? Afinal, essa informação é de interesse público porque ele é o Presidente da República. O jornal, O Estado de São Paulo, solicitou esses exames médicos judicialmente que, embora aprovado, Bolsonaro continua negando (os resultados dos exames). Por quê?

9) Apesar da resistência de Sergio Moro, o Presidente transferiu o COAF -Conselho de Controle de Atividades Financeiras – do Ministério de Justiça e Segurança Pública para o Ministério da Economia. A finalidade desse órgão é disciplinar, aplicar penas administrativas, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividades ilícitas, relacionadas à lavagem de capitais. Essa transferência, conforme previsto por Sérgio Moro, está enfraquecendo essa fiscalização;

10) O Presidente assinou a Lei Anticrime, totalmente ou quase totalmente desfigurada pelo Congresso, como forma de proteger e livrar deputados suspeitos da Operação Lava Jato em flagrante desrespeito ao que prometia na campanha eleitoral de 2018.

11)  Jair Bolsanaro age como se fosse Imperador nos moldes da Primeira Constituição Brasileira, de 1824. Conforme o artigo 99, “a pessoa do Imperador é inviolável e sagrada” e “não está sujeito a responsabilidade alguma.” Ou seja, o Imperador não respondia pelos seus atos. É o que depreende da afirmação de Bolsonaro: “quem manda sou eu” “Eu sou o Presidente.” “Eu sou a Constituição.” “Tenho a caneta.” “Cala a boca”. Esse “cala a boca” foi sua reação à pergunta de um jornalista. Essa agressão à imprensa é inaceitável e repercutiu, negativamente, pelo mundo. Ele está testando, o tempo todo, os limites da ordem pública e se aproxima da ruptura institucional em direção à ditadura. E se contestado, “o senhor não pode agir como está agindo”, ele desafia: “E daí?” Esse “e daí?” foi elevado à categoria de ação política porquanto Bolsonaro repete insistentemente. Esse “e daí?” revela outro traço de sua personalidade: a insensibilidade. Indagado sobre o que pensava sobre o número cada vez maior de vítimas fatais da pandemia e de vítimas hospitalizadas na luta pela sobrevivência, indaga: “E daí?” Esse pergunta revela insensibilidade e desrespeito aos familiares dos falecidos.

12) Dia 3 de maio, Jair Bolsonaro participou, outra vez (o anterior foi em 19 de abril), do ato, na Praça dos Três Poderes, contra o STF e o Congresso. Seus apoiadores, de verde e amarelo, cores/símbolo do bolsonarismo, solicitavam o fechamento de ambas as instituições e o retorno do AI-5. Ele e seus adeptos contrariaram recomendações de isolamento social como forma mais eficaz de combater a pandemia de coronavirus, ao se aproximar do grupo que o apoia. Declarou: “Tenho certeza de uma coisa: nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia e pela liberdade.” No dia seguinte, os Generais contradisseram o Presidente: ele tentou usar prestigio dos militares, o que provocou incômodo.  A Aeronáutica, o Exército e a Marinha estão sempre na defesa da independência dos poderes e da Constituição. Em virtude de Bolsonaro ter participado, em 19 de abril,  da manifestação pública que pedia intervenção militar no Congresso e no Supremo Tribunal Federal, a ABI – Associação Brasileira de Imprensa -  encaminhou pedido de impeachment de Jair Bolsonaro ao Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, fundado no argumento de que o Presidente “inequivocamente, incitou a desobediência à lei e infração à disciplina (...)”.   A propósito, Bolsonaro declara haver mobilização contra ele, a começar pela sua versão da facada de Adélio Bispo, em Juiz de Fora, MG, durante sua campanha eleitoral, em setembro de 2018. Adélio o fez em nome de mandantes, ocultados pela   Polícia de Minas. Segundo o então candidato, esses mandantes queriam afastá-lo das eleições  numa visão  bem típica  de teoria de conspiração.   

Muitos outros aspectos do passado podem ser evocados para acentuar o seu caráter autoritário com propensão à ditadura. Lembremo-nos da homenagem que Bolsonaro prestara   ao Coronel Brilhante Ustra ao votar pelo impeachment da presidenta da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Ustra foi torturador a serviço da ditadura (1964/1958). Por oportuno, Miguel Reale Junior, professor da Faculdade Direito do Largo de São Francisco e um dos autores do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em parceria com a advogada e professora da mencionada Faculdade, Janaína Paschoal, também advogada e, hoje, Deputada Estadual, lembra, no seu artigo Pandemônio, publicado em O Estado de São Paulo, dia 2 de maio, que Bolsonaro no programa Câmera Aberta, da Band, em 1999, indagado se fosse Presidente, fecharia o Congresso, respondeu: “ Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia”. E, nessa entrevista, defendeu a tortura e disse que o Brasil “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para a guerra civil(...), matando uns 30 mil (...) Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes.” Essa entrevista revela sua tendência à ditadura.  
                  
13) Na mencionada manifestação de 3 de maio na Praça dos Três Poderes, repórteres de O ESTADO DE SÃO PAULO foram ameaçados e feridos pelos apoiadores de Bolsonaro e autoridades manifestaram-se contra esses agressores. Carmen Lúcia, do STF, afirmou: “quem transgride e ofende a liberdade de imprensa ofende a Constituição, a democracia e a cidadania brasileira. É inaceitável, é inexplicável que ainda tenhamos cidadãos que não entenderam que o papel de um profissional da imprensa o papel que garante, a cada um de nós, poder ser livre”. Rodrigo Maia, Presidente da Câmara Federal:” Cabe às instituições democráticas impor a ordem legal a esse grupo que confunde fazer política com tocar o terror (...) Hoje, jornalistas agredidos. Amanhã, qualquer um que se opõe à visão do mundo deles (pode ser agredido.). Associação Nacional de Jornais (ANJ): “ Além de atentarem de maneira covarde contra a integridade física daqueles que exerciam suas atividades profissionais, os agressores atacaram frontalmente a própria liberdade de imprensa.  Atentar contra o livre exercício da atividade jornalística é ferir também o direito dos cidadãos de serem livremente informados.” Segundo a imprensa escrita e televisiva, os agressores foram identificados e serão processados. Por incrível que pareça, Bolsonaro nega ter havido agressões aos jornalistas, embora fotografias, divulgadas pela imprensa, revelem o fato. Bolsonaro só vê o que lhe interessa e nega o que o denúncia. Ele distorce os fatos. Os generais estão, o tempo todo, apagando incêndio. Até quando? A propósito, há anos, o Presidente declarou que nunca existiu ditadura no período de 1964/1985.

Tantas incoerências, agressões e contradições despertam o interesse dos cidadãos pelos traços de personalidade do Presidente. Intelectuais da área de humanas chegam a consultar tratados de psiquiatria e a admitir transtornos de personalidade. Alguns psiquiatras chegam a classificá-lo no CID-10 – Classificação Internacional de Doenças, da OMS – Organização Mundial da Saúde – relativo a doenças mentais, como a indiferença insensível aos sentimentos alheios (vide “E dai?” em desrespeito a dores dos familiares enlutados, vítimas da pandemia”; baixa tolerância e desrespeito a regras ( vide seu encontro com seus apoiadores na Praça dos Três Poderes nos domingos de 19 de abril  e 3 de maio que exigiam o fechamento da Câmara Federal, do Senado, do Supremo Tribunal Federal  e a retomada do AI-5 (Ato Institucional) que vigorou durante a ditadura militar (1964/1985); a incapacidade  para assumir a culpa e a propensão a culpar os outros ( vide atribuir o desgoverno da sua gestão ao Congresso Nacional e ao STF), quando ele mesmo compromete o seu governo; traços de paranoia, o levam a construir uma teoria de conspiração,  segundo a qual, a facada que lhe dera Adélio Bispo, durante a campanha eleitoral de 2018, em Juiz de Fora, MG, foi a mando de um grupo oculto que desejavam eliminá-lo das eleições. Além da facada de Adélio, Bolsonaro vê  outra conspiração: a negação de  Alexandre Moraes, do STF, à nomeação de Alexandre Ramagem, próximo da sua família, ao cargo de Diretor Geral da Polícia Federal, como tentativa de defender seu filho, Flávio, da acusação de rachadinhas”, quando deputado estadual no Rio de Janeiro. Essa nomeação fere os princípios de impessoalidade, de moralidade e interesse público; Critica e se opõe a Rodrigo Maia, presidente da Câmara Federal, por objetar medidas propostas pelo Executivo por ferir princípios constitucionais); narcisista (vide  encontros com seus apoiadores para colher aplausos nos mencionados encontros, o que revela sua autoglorificação).

O Presidente declara-se apoiado pelas Forças Armadas. A resposta: o Exército, a Marinha e a Aeronáutica apenas obedecem incondicionalmente à Constituição. O Presidente é apenas o Comandante, enquanto for inquilino do Poder. Aqui, uma crítica ao Ministério da Defesa: deveria condenar manifestações em favor do retorno do AI-5 e o fechamento do STF e Câmara Federal e intervenção militar. Esse Ministério deveria ter condenado a manifestação e recomendar ao Judiciário a   investigação para identificar os organizadores e financiadores desses movimentos.

O desgoverno de Bolsonaro é evidente e tende a agravar-se e preocupa as nações latino-americanas. Mais de 30 pedidos de impeachment foram encaminhados ao Presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia. Este os engavetou por dois motivos: o primeiro, a inconveniência por motivo da pandemia de coronavírus que ceifou milhares de vítimas e agravou ainda mais a cambaleante economia; o segundo: Bolsonaro aproxima-se do Centrão e negocia apoio em troca de cargos. São os seguintes os partidos que o compõem: PSL, PP, PR, PSD, PRB, PROS, SD, PTN e AVANTE. Contam atualmente com 200 deputados federais, uma barreira, por ora, intransponível para o impeachment. Bolsonaro enterrou a promessa de sua campanha de combater a corrupção e a velha política, representada pela prática de “dá lá, toma cá”, fundada no “preceito franciscano” de “é dando que se recebe”.
                               

Concluindo. Segundo CID-10, classificação Internacional de doenças  da OMS, organização especializada da ONU, são os seguintes os traços de personalidade do Presidente Jair Bolsonaro: indiferença insensível aos sofrimentos alheios; baixa tolerância e desrespeito a regras; incapacidade para assumir a culpa e a propensão para culpar os outros; traços de paranóia caracterizada pela desconfiança, perseguição e conceito exagerado de si mesmo a ponto de autoglorificação.


******************************


* É formado em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia Política de São Paulo, ingressou no magistério secundário e posteriormente no ensino universitário. Foi professor de História do Colégio Singular em Santo André e Antropologia Cultural na UMESP- Universidade Metodista de São Paulo, foi Secretário da Cultura de Santo André.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Na trilha de Macunaíma: a cultura para e com o povo



          "(...) água mole
           pedra dura
           tanto bate que não restará nem pensamento (...)"

Gilberto Gil

      
   Feche os olhos e imagine cenas em sua cabeça que remetam à ideia de cultura. O que vê? O que pensa quando pensa em cultura?

         Alguns anos atrás, na quebrada do Jardim Santo André, nem sonhávamos com a potência da cultura, pelos formatos e pelo elitismo colocados nesse campo. Era comum ouvir que cultura é coisa de gente rica e que aos pobres caberiam somente seguir a normatização que era criada e reproduzida pela lógica do mercado. A cultura tinha um lugar, geralmente centralizado,  pensada como a garantia do acesso a shows, teatro, música erudita, apreciação de quadros de artistas renomados e inacessíveis. Artistas eram confundidos como os únicos agentes culturais. Claro que arte é cultura, mas não só. Um equívoco restringir o campo da cultura às manifestações artísticas. Pensar assim é empobrecer a cultura. Felizmente temos figuras icônicas no Brasil que nos ajudam a sair da ignorância. Gilberto Gil é uma destas pessoas.  Enquanto Ministro da Cultura, a frase que acompanhou sua gestão foi "a criatividade do povo brasileiro é nosso maior patrimônio". Gil defendia que, em tempos de globalização, em que tudo caminha para a uniformização, é preciso atentar-se, dar espaço para o diverso, para aquilo que não se uniformiza, afinal, a imaginação do ser humano é permanente, está em constante movimento.

         Em 2009, no Jardim Santo André, tivemos a oportunidade de acessar o programa Cultura Viva do Governo Federal, uma iniciativa que fez parte da gestão de Gil, quando ministro. Escrevemos um projeto e participamos de um edital que daria início a uma viagem sem volta no campo da cultura. Uma das viagens mais importantes das nossas vidas, porque permitiu a conquista de uma visão mais abrangente de que a cultura é tudo aquilo que o povo faz. Esse projeto foi formativo. Enquanto participávamos dele, nossa visão sobre diversos aspectos da vida social também foi transformada. 

         Passando o tempo, tivemos a oportunidade de estudar, ler, conhecer e desenvolver práticas que nos levariam a ampliar nosso entendimento do que é cultura e qual deveria ser o papel do Estado nesse campo.

Já se passaram mais de dez anos,  desde a nossa primeira participação neste Projeto. De lá pra cá, a relação no meio social também mudou, já que passamos a compreender melhor a importância  da participação efetiva nos Conselhos da cidade. Começamos a fazer parte do Conselho de Cultura e inúmeros debates foram travados em defesa de um conceito de cultura mais abrangente, que desse conta de incluir toda a cidade, todas as pessoas, não somente a elite e não somente o centro.


         Interessante como as políticas públicas inclusivas levam um tempo para acontecer. Só agora atingimos alguma maturidade no debate da cultura, que só foi possível por meio da participação ativa no Conselho.  Ao recuperar esse espaço tão importante, percebemos que a discussão tem origem no direito constitucional em seu artigo 215, "o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."

         Mudanças na nomenclatura e no formato do Conselho aconteceram, porém as prerrogativas permanecem. Hoje, o conselho de políticas culturais continua deliberativo, consultivo e normativo, o que permitiu mudanças importantes como o último edital do Fundo de Cultura que permite que o Estado fomente iniciativas culturais de forma mais isonômica. Neste edital, em curso na cidade de Santo André, metade dos recursos devem destinar-se as iniciativas culturais da periferia, e metade, às iniciativas culturais do centro. Para que o edital tenha sucesso, é preciso rememorar as sábias palavras do sociólogo José Marcio Barros: “a cultura refere-se tanto ao modo de vida total de um povo – isso inclui tudo aquilo que é socialmente aprendido e transmitido, quanto ao processo de cultivo e desenvolvimento mental, subjetivo e espiritual, através de práticas e subjetividades específicas, comumente chamadas de manifestações artísticas.”

         A  partir da cidade de Santo André descrevemos o que tem sido a luta por nossos direitos culturais e como está se dando a participação da população por meio dos conselhos de políticas culturais, do Fundo de Cultura e dos Fóruns de Cultura, ao longo destes 3 anos com a Secretária Simone Zárate. Podemos dizer que os embates foram duros, porém democráticos. Não havia uma política cultural em construção, ao assumir a secretaria, Simone  pratica seu aprendizado de longa data. Somos o segundo mandato da nova versão do conselho de políticas culturais eleito.

         O Conselho Municipal de Políticas Culturais, órgão colegiado consultivo, deliberativo e normativo, integrante da estrutura básica da Secretaria de Cultura e Turismo, com composição paritária entre Poder Público e Sociedade Civil, se constitui no principal espaço de participação social institucionalizada, de caráter permanente, na estrutura do Sistema Municipal de Cultura, e tem como principal atribuição atuar, com base nas diretrizes propostas pela Conferência Municipal de Cultura, na elaboração, acompanhamento da execução, fiscalização e avaliação das políticas públicas de cultura, consolidadas no Plano Municipal de Cultura.

         Juntando todos os aspectos democráticos e de participação da sociedade civil dentro dos conselhos, começamos a desenhar a política cultural local de forma compartilhada e a sociedade civil tem sido fundamental para consolidar uma política de Estado, trazendo aspectos como a transparência, a isonomia e a retomada do nosso sistema de cultura local. Queremos dizer que o caminho está sendo trilhado e Santo André tem tido os seus avanços com as políticas estruturantes em curso, com um Sistema Municipal legitimado, Conselhos atuantes, Plano Municipal e Fundo de Cultura.

         O Fundo de Cultura, como já mencionado, está com inscrições abertas até 15 de janeiro de 2020. É algo a ser valorizado, pois apesar do contexto nacional não estar favorável as políticas culturais, em Santo André tem sido diferente. Percebe-se vontade política em se construir iniciativas ampliadas e democráticas. Há pouco tempo atrás, os fundos não eram geridos de forma aberta, hoje por exemplo está se consolidando a política de editais, respeitando a cultura em seus diversos aspectos, oportunizando a participação da criatividade do povo, como já defendia Gilberto Gil há uma década. Com um simples edital, um griô, pode participar do edital do Fundo.

         Para complementar, explicamos a importância deste agente cultural: "griô ou mestre(a) é todo(a) cidadão(ã) que se reconheça e seja reconhecido(a) pela sua própria comunidade como herdeiro(a) dos saberes e fazeres da tradição oral e que, por meio do poder da palavra, da oralidade, da corporeidade e da vivência, dialoga, aprende, ensina e torna-se a memória viva e afetiva da tradição oral, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e identidade do seu povo. A tradição oral tem sua própria pedagogia, política e economia de criação, produção cultural e transmissão de geração em geração”. A política cultural vigente hoje na cidade de Santo André oportuniza e fomenta desdobramentos das ações griôs e isso tem nome. Chama-se democratização da cultura.

         Os espaços públicos como Casa da Palavra e Casa do Olhar terão seus editais próprios, além destes, outros editais em diversos outros campos culturais também estão sendo assegurados, porém, o Fundo de Cultura tem um diferencial, foi um processo construído de baixo pra cima literalmente. Antes de sua conclusão, a sociedade civil por meio dos fóruns fez um amplo debate, sugeriu e consolidou uma proposta de fato democrática.

         Podemos dizer hoje, que Santo André é um oásis nas politicas culturais, porém é preciso participar, opinar, convidar pessoas, afinal, mais importante que consolidar ações é consolidar a democracia. Para isso é primordial incidir nas políticas, manifestar nossas vontades, fazer valer nossa voz e nossa vez. É preciso aproveitar esse espaço, lutar e consolidar novas políticas, ocupar outros conselhos, juntar  as pessoas e fazer coro, acreditar que a cultura é o campo das liberdades e da melhoria de vida coletiva.

Neri Silvestre, macunaímico
Isabel Rodrigues, na trilha

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

CULTURA - como forma de resistência e redenção política, econômica e educacional



Rodolfo Tokimatsu*  



Contrapondo-se a Leon Trotsky, quando afirmou, ainda no final dos anos 1930, que “diante da mediocridade da sociedade ocidental, a melhor arma é o silêncio, portanto, não é tempo de uma nova cultura”... nós da Quebrada, no entanto, afirmamos que sim, é tempo de uma nova cultura, e mais, de uma cultura permanente que não morre, mas se renova e se inova e se fortalece; é diante desse apogeu da mediocridade que as sociedade ocidental mergulha, sobretudo, a sociedade brasileira, que não só é tempo, como é necessária uma nova cultura, com todas as culturas unidas e integradas incluídas e respeitadas, como única forma viável de se bater de frente a essa onda de mediocridade que, ao que parece, toma ares de verdade absoluta para uma maioria expressiva da sociedade. Atravessamos um período política e culturalmente nefasto, um prenúncio de barbárie e retrocesso histórico, que é semeado pelas redes sociais, no Brasil, desde 2013, a princípio, mascarado como um protesto contra o aumento da tarifa do transporte público e, posteriormente, contra o governo de tendências progressistas vigente, propagando, em contrapartida um discurso conservador e contra as reformas sociais, reivindicando desmantelamento de programas sociais, clamando pela volta de políticas ultrapassadas e autoritárias, como o regime militar e propagando discursos de ódio, a princípio, contra o pensamento da esquerda, voltado às classes menos favorecidas, propondo o fim dos direitos trabalhistas e da aposentadoria para os trabalhadores, o desmantelamento do serviço público, em benefício aos interesses empresariais privados, gerando um argumento mentiroso de que o funcionalismo público concursado e um suposto excesso de direitos da classe trabalhadora e dos aposentados seriam a causa de uma suposta crise do país e engrossando esse discurso com ideias e propostas racistas, homofóbicas, machistas, misóginas, anti-intelectualista, anticultural e a todos que abrangem as conquistas sociais, resgatando, no grosso da população todo seu ódio e preconceito então latente, jogando a população contra seus próprios semelhantes. Nesse “modismo” da demonização, dois elementos essenciais para a formação da sociedade e do indivíduo e para a construção da nação, se veem mais atacados, tanto moral, quanto economicamente- a Cultura e, em especial, a Educação. Assistimos ao desmantelamento progressivo da escola pública desde as últimas três décadas, quando governos privatistas, comprometidos com interesses individuais e o capital internacional promoveu uma avalanche de “privataria”, atingindo todos os setores públicos, desde a educação, até a saúde, passando pelas indústrias estatais essenciais para a economia do país e provocando uma crise enorme não só na economia, mas na saúde, na educação e na cultura, setores que nunca deveriam estar nas mãos de interesses econômicos privados, sejam estes nacionais ou multinacionais. Porém, ultimamente, com a ascensão dos governos progressistas eleitos entre 2002 e 2014, o Brasil consegue, em parte, sanar essa crise de ordem econômica e cultural, desenvolvendo programas sociais de renda mínima, investindo em infraestrutura em locais antes esquecidos pelo poder público, quitando a dívida externa e promovendo alguns avanços na área de educação e cultura, como as políticas de diversidade cultural e educacional e o sistema de inclusão nas escolas e os pontos de cultura, dando voz à periferia e às comunidades com pouca voz, ou nenhuma, fomentando o resgate da potencialidade dos povos que compõem essas comunidades. Porém, essa onda progressista foi banida do governo por ações de ódio, calúnias, mentiras e ameaças de todo o tipo contra pessoas ligadas ao governo e às minorias, como negros, indígenas, LGBT, quilombolas, Sem Terra, Sem Teto, sindicatos, mulheres, etc. Agora, eleito o novo(?) governo, esse retrocesso cresce consideravelmente, com propostas toscas, beirando o absurdo, como combate a uma suposta “ideologia de gênero”, que, segundo os lacaios dessa barbárie, “ensina as crianças a mudar de sexo”, entre outros absurdos. Propõem retrocessos educacionais como a volta de disciplinas como Educação moral e civismo, propõem, também, acabar com disciplinas essenciais à formação do caráter social do indivíduo, como história, geografia, filosofia, sociologia, etc., em benefício a um discurso equivocado, mal intencionado, de caráter belicoso e falso- moralista de preconceitos e ódio, que vêm prontos à sociedade como uma verdade redentora, que vem para banir toda aquela ideologia infernal que estaria sendo propagada pelo ensino público e pela gente que faz cultura. Com isso, o profissional da educação é demonizado e falsamente posto como inimigo da família, da moral e dos bons costumes e seu trabalho, cada vez mais desvalorizado, o serviço público é sucateado e os acordos fisiologistas e clientelistas com a iniciativa privada com o interesse geopolítico de alguns países do dito primeiro mundo crescem descomunalmente e acabam por determinar os rumos políticos, econômicos e culturais do país. Esse processo de mediocrização da sociedade reduz ainda mais o conceito amplo e abrangente do termo “cultura”, limitando-o a um ou outro segmento cultural, embaçando uma visão mais ampla e global do termo, criando uma ideia de cultura simplista e superficial, ao sabor do senso comum. Assim, “cultura” fica sendo para alguns, “algo ligado à educação instrutiva, ao intelectualismo”, outros, “às artes e manifestações folclóricas”, e, ainda, a “cultura de comunicação de massa”,mas ignorando o poder abrangente que essa palavra possui e prejudicando toda a nação e um povo que produz cultura, em todos os sentidos. Essa visão estreita, para não dizer cega em relação à cultura, ao invés de fomentar a produção e a justa distribuição cultural para todo o povo, cria segmentos elitizados que se destacam socialmente e usufruem de regalias e mamatas dos subsídios que deveriam fomentar a cultura de um modo geral. Assim, surgem lobbies de artistas, educadores, intelectuais, empresários, todos querendo “abocanhar” uma fatia desse amplo “bolo cultural”, que na verdade é uma visão ínfima de algo tão abrangente, mas que acaba por consumir recursos que poderiam criar uma economia popular e forte, geradora de renda, motivadora da economia e angariadora de impostos, sobretudo. Nós, da Quebrada, no entanto, sabemos que a cultura é muito mais que isso, mesmo porque somos produtores e, ao mesmo tempo, produzidos por uma ou várias culturas interligadas. Para o professor Victor Vich, a cultura é “a soma do que produzimos, como produzimos e como somos produzidos. É a soma de ‘saberes e fazeres’...”, portanto, um termo abrangente, que carece de muita vivência cultural e vontade política para torná-lo prático e tornar o povo autônomo e soberano. Vich ainda salienta que “ somos seres culturais, porém, alienados de nossa própria produção cultural”. Essa “alienação”, à qual se refere Vich, não significa o que o senso comum entende por tal, isto é, pessoas alheias ou ignorantes da realidade cotidiana, mas, numa concepção marxista, uma privação de si e dos seus, por exemplo: Um carro com motor alienado significa que esse motor está em outro carro. O mesmo ocorre com o povo que produz cultura, mas esse produto é apropriado por terceiros. O trabalhador é alienado do fruto de seu trabalho porque a mais- valia apropria-se desse fruto para o patrão, ainda que não tenha sido este quem trabalhou para produzi-lo. No programa “Jornalista desempregado”, produzido pela Careta Filmes, Nery Silvestre, em entrevista, nos fala dessa alienação da cultura pelo povo, dizendo que “ a cultura pode (e deve) gerar trabalho e renda, na potencialidade da pessoa, dentro das suas possibilidades”. Cultura é tudo o que um povo produz, portanto, não se limita à arte e ao ensino. Olhar por esse viés, além de limitar o conceito de cultura, o elitiza e transfere o poder cultural da grande massa para uma pequena elite. A cultura, em toda sua abrangência, gera trabalhos e produtos culturais, talentos, artes e obras, saberes e fazeres. Portanto, gera trabalho, economia e renda. Para Antônio Rubin, essa geração de renda e economia não significa que a cultura vá se submeter a um monopólio da comunicação, ao patrocínio da iniciativa privada, ou à tutela do poder público, porém, esses setores poderosos devem colaborar com a cultura da sociedade, pois fazem parte desta, é sustentado por esta e foi eleito por esta. Rubin enfatiza que a cultura faz sua auto gestão e o mercado de cultura é a própria gestão cultural que administra o produto cultural e não o patrocínio dessas elites. O povo que faz cultura não “mama nas tetas do estado”, ou se beneficia da “caridade” da iniciativa privada, quando angaria algum recurso para promover alguma obra cultural, mas esses poderes devem ceder esses recursos, porque fazem parte dessa sociedade e é sustentada e eleita por esta. Nestes tempos difíceis que atravessa o país e, em especial, a cultura, pela deturpação de má fé de todos os conceitos e termos para “adestrar” o senso comum, este inimigo da educação e da cultura, encaremos a cultura, em todas as suas abrangências, como única forma de resistência a esse limiar de ideias e atitudes neo- fascistas, por parte do governo eleito e de seus seguidores, ao mesmo tempo em que é o clamor do povo ao que é seu por direito e ao direito do que é seu. A cultura, portanto, propõe um resgate da dignidade do povo, dando poder a este de fazer sua auto gestão e administrar sua criação e produção, gerar sua própria economia, livre de “atravessadores culturais” ou atrelamentos a poderes públicos ou privados. Nery Silvestre enfatiza que “cultura não é status, glamour, frescura ou preciosismos. É, antes, fruto de trabalho e geradora de trabalho. É economia e geração de renda. É desenvolvimento de potencialidades e fomentação de ações populares, Não é e não tem a pretensão de ser, ou fazer uma revolução. É apenas a afirmação de um povo, a demonstração de sua capacidade, a criação de valores e produção de bens materiais e simbólicos. O povo quer apenas o que é seu de direito!”. 

*  Artista multimídia e correspondente da Quebrada - (TomMix Bala)

quarta-feira, 13 de junho de 2018

SOBRE CULTURA E DIREITOS HUMANOS


Marcelo Dino Fraccaro





A importância da inter-relação entre Cultura e Direitos Humanos está devidamente explicitada nos principais documentos internacionais existentes. Desde a Carta das Nações Unidas composta pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, passando pelos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), e culminando com as diversas declarações e instrumentos internacionais subsequentes, a questão, abrangente e complexa, visa garantir o efetivo respeito, proteção e promoção desses direitos nos mais amplos aspectos.

Também na Constituição Federal de 1988, efetivamente em seu artigo 215 – “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais...” - o Brasil, signatário de todos os acordos e instrumentos internacionais já citados, busca garantir os direitos culturais.

Todavia, embora representados e enfatizados em tais instrumentos formais, é reconhecida a dificuldade em se garantir em âmbito nacional o necessário respeito e garantia desses direitos de forma universalizada à população.

Embora há a consciência de que direitos representados em instrumentos formais não são efetivamente respeitados no Brasil – somos um dos países onde mais se verifica o assassínio de defensores dos Direitos Humanos em todo o planeta – é notória a contradição entre garantia formal de direitos no país e o efetivo respeito, proteção e promoção desses mesmos direitos. A desigualdade gritante de acesso às liberdades democráticas corrobora esta contradição, como o acesso desigual à justiça, por exemplo, por parte dos diferentes estratos da população, assim como de serviços básicos como saúde, saneamento entre outros verificados como carências para a maior parte dos habitantes.

Na vida cultural do país a contradição se repete, e em certos aspectos, aqui para o que nos interessa mais diretamente, se acentua. Nossa tradição nesse campo nos demonstra como a cultura é tratada de forma marginal não apenas por agentes públicos como também, e principalmente por amplos setores de nossa sociedade. A cultura é sempre vista como algo assessório, desimportante, secundário. Pior que isso é instrumentalizada e distorcida na busca por resultados mercadológicos da indústria cultural e seus mecanismos, tudo transformando em entretenimento e lazer desprovido de sentido.

Na escalada conservadora verificada no momento social e político que vivemos a Cultura e os Direitos Humanos passam a sofrer ataque ainda mais frontal. A desconstrução dos avanços mínimos obtidos no campo dos direitos civis e políticos, assim como os econômicos, sociais e culturais ganha cada vez mais entre nós, promovida amplamente por setores institucionais e com apoio da iniciativa privada e os meios de comunicação concentrados nas mãos de poucas empresas deste segmento. É a indústria cultural elevada à potência tal que até aqui não havíamos experimentado.

O avanço das forças conservadoras nesta segunda década do século XXI, sabemos, não é privilégio nosso, pelo contrário ganha contornos mais ou menos traumáticos em todo o mundo. O atual ordenamento político, ideológico, econômico planetário contribui sobremaneira para as evidências que aqui esboçamos. Porém, numa sociedade como a nossa que não atingiu minimamente o status de Estado Democrático e de Direito, ou na melhor das hipóteses alcançou por breve período um lampejo do que poderia vir a se constituir como tal, as desigualdades assumem características ainda mais trágicas.

Por outro lado, alimentadas pelo ódio de classe promovido pelos mesmos setores conservadores de sempre, nossas diferenças culturais, sociais, raciais, religiosas - diversidade que potencialmente se apresenta como nossa maior riqueza como povo - passam a sofrer ferozmente a ação de uma sociedade cada dia mais intolerante e despótica. A desconstrução em curso, mais que ação de hostes intolerantes e desconexas é parte de projeto mais amplo de enfraquecimento de nossa identidade como nação e de nossas possibilidades nos campos interno e externo. Em qualquer situação, histórica, econômica, geopolítica, a dominação de um povo via sua desconstrução e colonização cultural é a mais nociva forma de dominação.

A parte toda a tragédia de nossa história com a colonização e a escravidão, nossa trajetória como país jamais enfrentou desafios mais exigentes. Nos encontramos diante de verdadeira encruzilhada no longo processo de nossa formação, onde escolher um caminho a seguir não se dará de forma que não seja de algum modo traumática. Porém, nada poderá ser mais traumático do que a escolha de não seguir nenhum caminho. Lutar por nossos direitos e por nossa identidade cultural, independente da aceitação de institucionalidades e instrumentos formais é certamente a escolha de um caminho a seguir.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Manifestação pelo resgate da cultura de SBC

Reproduzimos abaixo o manifesto do movimento cultural de São Bernardo do Campo, contra a gestão da atual administração pública (Prefeito Orlando Morando) na área da cultura. Foi criado um evento na rede social Facebook convocando para uma manifestação para o próximo dia 08.02.2018, na Praça Brasil, Centro, SBC, com início às 18h00. Até o momento desta nossa publicação já contava com mais de 800 adesões e diz o seguinte:

Manifestação pelo resgate da cultura de SBC

 “Não dá mais pra nós, agentes culturais de SBC ficarmos em silêncio com o que vem acontecendo.

Desde que Orlando Morando chegou, não se vêem mais eventos de hip-hop por aí. Não se vêem mais eventos de reggae por aí, não se vêem eventos de rock/hardcore/metal como antes, e nem de nenhuma outra forma de cultura que não seja sertaneja/gospel/popular. O CLAC (Centro Livre de Artes Cênicas) foi extinto. O CAJUV funciona de modo precário. Não existem mais eventos na maior pista de skate da américa latina.

O prefeito constituiu o conselho municipal de cultura sem nenhuma consulta aos artistas da cidade. Os conselheiros são pessoas de pouco envolvimento cultural na cidade.

E a última é que, para realizar eventos em parques municipais da cidade, como a pista de skate, à partir de agora, teremos que pagar aluguel para a prefeitura.

Como se imposto não existisse. É uma verdadeira máfia, loteando São Bernardo do Campo e distribuindo lobby e lucros.

Tem secretário do meio ambiente vendendo cargos no seu gabinete. Tem secretário de cultura que nunca trabalhou no meio cultural. Tem a volta as aulas canceladas por falta de uniformes e merenda, mascarada de "prevenção à febre amarela". Tem prefeito que finge que não sabe de nada disso

Motivos fora da cultura já existem de sobra. E dentro?!

Ano passado durante a realização de mais um evento do InI Sounds Rastaman Sounds no Pq. São Bernardo, a GCM chegou, reprimiu, pegou todos os equipamentos e levou embora.

Isso aconteceu mais algumas vezes, por exemplo no REGGAE no D.E.R. Se eles não aprovam eles vem, reprimem, retiram o equipamento, levam embora e pra retirar só com multa.

Já no Riacho Grande temos mega-eventos financiados pela SABESP acontecendo, com artistas de cachês milionários. Eles alegam que nossos eventos incomodam. A sujeira, o barulho, o trânsito, incomodam os moradores igualmente. Porém, sabemos muito bem porque certos eventos acontecem e outros não.

Conforme o próprio secretário de cultura disse, eles querem privatizar os parques da cidade.

Será que eles vão fazer tudo isso sem questionar antes as pessoas que fazem cultura na cidade desde antes deles chegarem ao poder??!

E pior: será que nós vamos ficar assistindo tudo sem se mexer?!

CONVOCAMOS TODAS AS FRENTES CULTURAIS DE SBC E DO ABC TODO PARA UM ATO DE MANIFESTAÇÃO PELO RESGATE DA NOSSA CULTURA.

NOS REUNIREMOS QUINTA-FEIRA (08/02) ÀS 18H NA PRAÇA BRASIL. SAIREMOS DA PRAÇA BRASIL ÀS 19H. E VAMOS ATÉ O PRÉDIO DO SECRETÁRIO DE CULTURA QUESTIONAR PESSOALMENTE NO MEGAFONE O QUE ESTÁ ACONTECENDO.

Porque estamos prestes a entrar num período aonde cultura em São Bernardo vai ser festival de verão no riacho, festival do vinho, festival italiano e tudo o que grandes empresas puderem patrocinar.

A CIDADE TEM PULSO CULTURAL, MUITO ALÉM DISSO. CENAS INDEPENDENTES. PÚBLICO FREQUENTADOR.

A prefeitura já não financia projeto de ninguém que eles não gostem. Tudo bem. Agora, silenciosamente aprovar privatizações que no fundo vão nos silenciar a longo prazo? NÃO!

E AÍ SECRETÁRIO DE CULTURA ADALBERTO DAL GUAZZELLI?
E AÍ PREFEITO ORLANDO MORANDO?”