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quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Hip Hop – um retrato falado

CULTURA SEM CARIMBO IX – Hip Hop – um retrato falado



Na reunião mensal do mês de outubro, o Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC promoveu a nova edição do Ciclo Cultura Sem Carimbo que já ouviu depoimentos de quase duas dezenas de representantes de coletivos e produtores independentes individuais do grande ABC.

Desta feita, convidou dois pioneiros da Cultura Hip Hop em São Bernardo do Campo, Fábio Santana Santos e Marcos Roberto da Silva, que narraram suas experiências de arte e vida, desde o surgimento daquela manifestação cultural até os dias de hoje. A conversa foi mediada por Neusa Borges, que bem acompanhou de perto toda essa trajetória:



Fábio Santana Santos, conhecido pelo nome artístico de SAN AJAMU OADQ, um dos precursores da Cultura Hip Hop em São Bernardo, em 1988, iniciou sua fala referindo-se à época de estudante, no Jardim Farina, onde estudou com Marcos Roberto, conhecimento pelo nome artístico de BLACK ALQUIMISTA,  quando começaram a frequentar os bailes black, organizados por Mr. G., verdadeiros locais de encontro. Saíamos atrás da compra, com muito sacrifício, de LPs de Hip Hop americano, com vocal e instrumental e em cima do instrumental, colocávamos as nossas letras. Nós fazíamos a cena e éramos nosso próprio público.

Daí em diante, ambos, Fábio e Marcos, unidos pela força da longa camaradagem e trajetória comum, passaram, em dueto, aos depoimentos, dos quais, passamos a selecionais alguns fragmentos
- Falamos aqui da Cultura Hip Hop e seus 4 elementos: Dança, DJ, MC e Grafite.
-No início, nós só queríamos cantar, mas com o tempo o Rap foi se politizando e passando a contar suas próprias histórias.



- Íamos pra a Capital, aprender com o pessoal de lá e havia de tudo, Concurso de Rap através do Clube do Rap que promovia encontros num determinado Bairro de São Paulo. No Metrô São Bento, apresentávamos dança, depois na Praça Roosevelt. Por questões financeiras com o deslocamento, passamos a buscar espaços no ABC. Primeiro no terminal Ferrazópolis. Foi quando surgiu a oportunidade de um espaço no Sacolão da Av. Peri Ronquete, onde havia uma quadra de futebol. Lá, nos sábados à tarde, nos apresentávamos. Levávamos um gravador a pilha, mas isso se mostrou inviável pelo custo das pilhas. Foi quando passamos a utilizar energia roubada, sem ter consciência do que isso significava. Tínhamos por volta de 14 anos. Dali, passamos para a pista de Skate no Paço Municipal. Paralelamente, aconteciam os bailes, os festivais de Rap, o rádio. As equipes de Hip Hop tinham horário na  Rádio Bandeirantes. O rádio foi o grande difusor dessa cultura. A MTV também transmitia RAP de madrugada.

-Em 1990 fomos ao Departamento de Cultura de São Bernardo do Campo, atrás de uma tomada para o nosso equipamento e isso foi a nossa salvação. O Secretário, à época era o Luiz Roberto Alves. e a equipe nos mostrou que o que fazíamos era arte e que isso precisava ser apoiado. Nós não sabíamos. A Secretaria de Cultura promoveu um projeto Piloto nos bairros com apresentações e encontros. Fomos os primeiros a fazer contato com o Poder público.



- Antes, pagávamos para cantar nos bailes (a entrada dava direito à apresentação), depois disso, a partir de 1990, passamos a ter apoio público em espaço cedido pela Prefeitura. Aí começa o movimento de rua que chegou a reunir 30 grupos. A Secretaria de Cultura de SBC organiza o 1º livro de Hip Hop Brasileiro - ABC RAP no qual vimos nossas letras impressas pela primeira vez.

- Tivemos oportunidade de participar de oficinas de música, compasso, etc.. Foi criada uma sala no Biblioteca Manuel Bandeira, no Baeta, para discutir a questão indígena e o movimento negro.

- Nessa altura estávamos com 17 para 18 anos e a consciência racial aflorou. SAN se filia ao movimento negro unificado.



- Foi quando começamos a entender o jogo para poder jogar e incorporamos o quinto elemento: o conhecimento. Fomos estudar mais.

- Em 1993 foi eleito um novo Prefeito, Walter Demarchi e desmantelou tudo. A agente cultural Neusa Borges, por uma decisão daquela administração, durante muito tempo ficou impedida de trabalhar com o pessoal ligado ao Hip Hop, pois, na época, havia muita incompreensão para com o movimento.

- Nesse mesmo ano, 1993, fundamos a Posse Hausa, organização que tinha na sua essência trabalhar a cultura Hip Hop com responsabilidade político-racial e que se reunia no espaço cedido pelo projeto Meninos e Meninas de Rua.



- Foi aí que precisamos estudar e cuidar da vida pessoal para poder contribuir de outra forma. Conhecer para agregar mais no coletivo.

- Fomos chamados para ministrar oficinas e nisso fomos pioneiros absolutos no Hip Hop. A secretaria de Saúde de SP nos chamou para ajudarmos nas campanhas da FEBEM com a linguagem do Rap. Acabamos por colaborar na elaboração de uma peça de teatro com o pessoal da FEBEM, onde além das letras, tinha o break e a dança.

- Com o dinheiro das oficinas, gravamos o nosso primeiro demo.  2003 finalmente a Posse Hausa é registrada como uma associação de entidade civil e o Blackalquimista  foi seu primeiro presidente.

- Na retomada, chegaram novos jovens para quem tentamos passar nosso código de ética. Mas os que vieram depois caíram nas muitas armadilhas (drogas, álcool) e isso, infelizmente, passou a ser consenso.



Fábio e Marcos Roberto cursaram universidades (Direito e Gestão de Qualidade, respectivamente). Fábio coordenou um grupo de Pré-Vestibular comunitário, do qual saíram centenas de alunos para entrar na universidade. Uma delas foi estudar medicina em Cuba.  







Ao final, BlackAlquimista disponibilizou para venda o mais recente CD do Grupo Alquimistas, CHUMBO, recebido com entusiasmo pelos presentes.

E a conversa entraria noite adentro ainda mais porque as histórias são muitas e muita a vontade de contá-las. As mais de 2h de depoimentos foram gravadas em vídeo e estão disponibilizadas aos interessados em pesquisa, mediante consulta marcada, na Livraria Alpharrabio.
As fotos são de Luzia Maninha.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Cultura Sem Carimbo VIII – registro da reunião de junho/ 2015

Neusa Borges




O ciclo Cultura Sem Carimbo, promovido pelo Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC, convidou o Grupo Cênico Regina Pacis, de São Bernardo do Campo,  para a sua reunião do mês de julho, ocasião em que vários dos seus integrantes fizeram relatos sobre a trajetória do grupo teatral mais antigo da Região, criado por Antonino Assumpção (Sunça, para os mais próximos), jornalista e amante dos esportes, falecido em 1995.

A fala inicial foi de Hilda Breda, atriz e diretora do Regina Pacis, que apresentou as atrizes Ana Medici, Fátima Lucas e Emeri Guglielmetti, cujos depoimentos viriam intercalados com pequenos trechos do repertório do grupo. Ela também citou os atores José Luiz, Cleide, Fernando, Luiz Henrique e Fabrício, misturados entre os convidados que foram prestigiar o encontro.



“O grupo Regina Pacis foi criado no dia 21 de abril de 1962, dentro da igreja matriz de São Bernardo do Campo, dela se desligando dois ou três anos depois. O nome foi inspirado num trecho de uma ladainha em louvor a Nossa Senhora, que, na última frase, tinha Regina Pacis, que vem do latim e que quer dizer rainha da paz”, disse Hilda.

A diretora comentou que as pessoas sempre perguntam: Quem é a Regina? Portanto, não se trata de nenhuma homenagem a uma mulher com tal nome, ou coisa parecida, mas de uma inspiração advinda das missas que eram rezadas em latim.

Começaram com pequenas esquetes e, algum tempo depois, partiram para textos mais elaborados.
Atualmente o grupo conta com uma média de 15 pessoas. Há quem está há mais de 40 anos, como é o caso de Hilda Breda e Ana Medici, que ingressaram em 1968.



“Fui levada pelas mãos do meu pai, que já fazia parte do grupo, atuando como ator. Fui acompanhar os ensaios. Ficava encantada com tudo aquilo. Meu pai no palco e eu na plateia, só assistindo. Eu, ainda uma menina. Um dia, meu pai disse: Você vai fazer teatro também. No início, fiz figuração, não tinha fala. Lembro-me de uma encenação em que eu fazia um discípulo de Cristo: colocava barba, aquelas roupas todas, entrava em cena, não falava nada. Mas achava o máximo!”, disse Ana Medici.

Alcides Médici, o pai da menina Ana Medici, viria a orgulhar-se de sua filha que, alguns anos depois, pela sua atuação como melhor atriz coadjuvante na peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi contemplada com o Prêmio Governador do Estado. Mas, o orgulho foi recíproco, pois papai Alcides também foi premiado como melhor ator do referido espetáculo.

Por ter surgido numa época em que a sociedade ainda era bastante repressora para com as mulheres, sempre são indagados se as atrizes do grupo sofreram discriminação. Hilda Breda garante que não, pois, segundo ela, talvez tenha a ver com o fato de que tudo girava em torno de um ambiente familiar e também da igreja.

Um dia, a bailarina decidiu que também queria fazer teatro. Fez um curso com Antonino Assumpção, foi convidada a substituir uma atriz que estava de férias e nunca mais saiu do Regina Pacis.
“Hoje não somente atuo como atriz, mas como coreógrafa, toda vez que a montagem exige”, disse Emeri Guglielmetti, que, anos depois, levaria seus dois sobrinhos- netos para o grupo.



Quando indagada sobre em que ano ingressou no Regina Pacis, Fátima Lucas responde: “Nós entramos em 1983. Sim, nós, pois foi meu marido, eu e minhas filhas. Eu levava mamadeira nos ensaios. E entramos atendendo ao convite do Antonino Assumpção, após a nossa participação em um curso de teatro que ele ministrou na Basf”.




Em seguida, Fátima Lucas interpreta um trecho de um depoimento de Clarice Lispector, da peça Ah, Mulheres!  Aplausos!!!



A Cleide ingressou no grupo em 1977, fazendo figuração. A sua peça de estreia foi Castro Alves Pede Passagem. Após um ano, o seu futuro marido, José Luiz do Prado, também passou a integrar a trupe. Tempos depois, era chegada a vez da filhinha do casal, aos três anos de idade.

“Comecei em 1978, um ano depois que a Cleide. Eu tive um pouquinho mais de sorte, pois não precisei fazer figuração (risos), pois o rapaz que fazia o espetáculo infantil Viagem ao Faz de Conta, na época fazia o serviço militar e, por algum motivo, precisou deixar a peça. Era o papel principal e eu tive uma semana para decorar o texto. Não tinha nenhuma experiência com teatro. Foi muito bacana a minha estreia: fiz a primeira fala e esqueci o resto (risos). Terminado o espetáculo, falei: nunca mais eu volto para esse negócio. Ensaiei direitinho e, quinze dias depois, voltamos e deu tudo certo. Fui melhorando, conheci a Cleide e acabei casando com ela. E estou no grupo até hoje”, disse José Luiz.



“Foi 1978, mas passei a participar mais efetivamente depois que me casei com a Ana (risos). Minha parte é mais de logística”, disse Fernando, o marido da Ana Medici.

Fernando lembrou que Antonino Assumpção era de Santo André, assim como sua família.



Ana Médici ressaltou que, ao chegar a São Bernardo, Assumpção levou informações importantes não somente na área cultural, mas também na dos esportes, o que contribuiu enormemente para uma grande parcela da população que, na época, não possuía as facilidades dos dias de hoje no que diz respeito ao acesso à informação.

“Eu comecei no ano passado, fazendo Natal No Bosque. A tia da minha mãe quem me trouxe. Comecei fazendo o galo. No começo foi um pouco difícil, mas aprendi muita coisa. Mudou o meu jeito de falar, porque eu era muito tímido, não conseguia nem falar direito. Melhorou muita coisa, gostei muito. Pretendo continuar”, disse o adolescente Luiz Henrique, sobrinho - neto da bailarina/atriz Emeri Guglielmetti.



O Fabrício, irmão do Luiz Henrique, que também atuou na peça, não quis nem saber de conversa, quando a diretora Hilda Breda pediu para que ele também falasse sobre a sua personagem. Minutos depois, eis que o ator de quatro anos de idade tagarelava num grupo de pessoas encantadas com sua desenvoltura e fofurice. Ah, a diretora Hilda Breda nos informou que Fabrício fez o papel do anjo.



“Período muito difícil aquele da ditadura. Muitos grupos desistiram de atuar. Os textos tinham de passar pela censura. Naquela época, não tinha copiadora, fazíamos as cópias em mimeógrafo. Uma cópia ia pra Brasília, outra para a censura federal, que era na Polícia Federal, na Xavier de Toledo, em São Paulo. A gente ia lá pra buscar o texto e saber a respeito. Então eles falavam que, ou a peça poderia ter sido proibida, ou então tinha cortes. Eles cortavam páginas inteiras, ou, então, que tinha sido liberado o texto e nós tínhamos que marcar para os censores irem assistir ao espetáculo. Então eles escolhiam o dia e naquele dia a gente tinha que estar disponível. Naquele dia e horário, buscá-los para levar a São Bernardo para eles assistirem ao espetáculo, para ver se liberavam, ou não”, disse Hilda Breda.

O fato é que todos os integrantes do grupo trabalhavam (como ocorre até hoje) em outras atividades, ou seja, cada qual tinha o seu emprego; portanto, ninguém vivia do teatro e, por essa razão, era bastante complicada a logística para buscar censores, que também precisavam ser levados de volta, muitas vezes nas suas casas, pois, quase sempre, a sede onde atuavam já estava fechada, devido ao adiantado da hora. Folgados aqueles censores, hein!

“Era classificação etária, na verdade. Eles tinham que ver, chamavam de ensaio do visual do espetáculo. Só pelo texto era uma coisa, o que a gente encenava eles tinham que ver. Duas horas da tarde, todo mundo trabalhando: Gente! Nós temos que fazer o espetáculo para os censores!, disse Ana Medici.

A encenação para aquele pessoal da ditadura, porém, acontecia de forma diferente da que seria para o público. Hilda Breda relatou que o grupo sempre lançava mão de disfarces, com o intuito de garantir a liberação da peça. “Era difícil, mas a gente não deixou de dar voz à liberdade”, disse ela.



Num sábado de uma noite de 1968, no salão paroquial da igreja matriz de São Bernardo, haveria encenação da peça Liberdade, Liberdade (Millor Fernandes e Flávio Rangel), pois já estavam com o certificado de censura nas mãos. Mas, naquele mesmo dia, ficaram sabendo, através do jornal O Estado de São Paulo, que o texto estava proibido em todo território nacional. Sufoco!

 Uma ou duas horas antes do horário marcado para a apresentação da peça, integrantes do grupo rumaram para o salão paroquial, munidos com o recorte do jornal com o anúncio sobre a proibição da mesma. Em frente ao local, os homens da censura aguardavam no interior de uma Veraneio sem placa. Decisão dos atores: Não, não vamos fazer o espetáculo. Não vai dar.

Cada pessoa que chegava, ouvia as explicações sobre o porquê que a peça não seria encenada. O recorte do jornal era a prova de que a decisão não havia partido dos integrantes do grupo.
“As pessoas perguntavam: Não vai ter a semana que vem? A resposta era: Não, pois estava censurado”, disse Hilda Breda.

No ano de 1979, o grupo montou Liberdade, Liberdade, que, após mais de uma década censurada, finalmente fora liberada após a chegada da anistia. Então, numa noite daquele mesmo ano, a peça foi apresentada no teatro Cacilda Becker, em duas sessões, pois, ao constatar que havia uma enorme fila de pessoas contornando o Paço Municipal, o diretor Antonino Assumpção decidiu que haveria sessão dupla. Naquela noite, finalmente, todos os que estavam ávidos pela liberdade puderam assistir ao espetáculo que ficara censurado por mais de dez anos.

Pausa para Hilda Breda apresentar trecho do Navio Negreiro, da peça Liberdade, Liberdade. Aplausos!!!



Após a sua performance, Hilda Breda e Ana Medici continuaram relatando outros episódios que o grupo enfrentou nos tempos da repressão, porém Hilda pediu desculpas por, segundo ela, estar falando muito sobre aqueles fatos.

“Então, ainda falando da censura, nós tivemos pelo menos dois espetáculos proibidos. Os dois praticamente chegaram  na pré-estreia; a gente montou tudo e tal, e foram proibidos. Os dois foram dirigidos pelo grande diretor, que era Eugênio Kusnet”, disse Hilda.

Embora nem sempre ocorresse proibição, muitas vezes eram tantos os cortes que a peça ficava irreconhecível.

“Às vezes, eles liberavam assim: liberavam com cortes nas páginas tais, tais, tais e tais. Então, você pulava da 20 pra 32; da 32 pra 40. Aí ficava uma coisa que era um outro texto. E, à vezes, você não tinha como fazer o gancho, porque eles cortavam aleatoriamente”, disse Ana Medici.
O fato é que havia todo um processo, ensaios e mais ensaios e, às vésperas da estreia, eis que tudo ia pelos ares, disseram.
“Era muita pressão. Foi um período muito difícil”, disse Hilda Breda

Por ter sido, sem sombra de dúvida, um período nefasto da nossa história (assim como foi o da escravidão), relatar as atrocidades ocorridas é de extrema importância, sobretudo em tempos em que desavisados ocupam as ruas pedindo o retorno da ditadura militar. Portanto, os integrantes do Regina Pacis devem, sim, falar, falar e falar, para as mais diferentes plateias, pois, quem sabe, consigamos colocar na cabeça dos “abestalhados” que tudo o que não precisamos é da volta da praga que só fez violar direitos humanos. Credo!

Mas, o fato é que o grupo conseguiu resistir à ditadura militar, seguiu em frente e continua atuante, apesar das adversidades que enfrentam nos dias de hoje.

Após encenar um trecho de “Ulisses”, de James Joyce (aplausos!!!), Ana Medici disse: “Às vezes, a gente desanima, porque não é fácil, mas a gente ama o que faz e segue em frente.  Fazemos com cachê e sem cachê”.



Falaram sobre a dificuldade para conseguirem teatro em São Bernardo, por conta da atual política de ocupação dos mesmos.

A dificuldade de encontrar textos, seja de autores nacionais ou estrangeiros, também é fato. Mas, “tudo se resolve, pois a diretora Hilda Breda, que escreve muito bem, sempre dá um jeito”, disse Emeri Guglielmetti.

A última performance foi de Emeri, que encenou o poema “Todas as vidas”, de Cora Coralina. Aplausos!!!



Como contar mais de cinquenta anos de história de um grupo em duas horas? Foram mais de 100 espetáculos montados, com autores nacionais e estrangeiros; um acervo com cerca de 2.000 itens (que se encontra num espaço nas dependências de uma escola no Bairro Baeta Neves); participações em vários festivais, os quais lhes renderam vários prêmios; inúmeras apresentações em teatros, centros culturais, escolas de periferia etc.



Nos dias de hoje, em que muitos jovens procuram cursos de teatro apenas como trampolim para virarem atores globais, onde poderão fazer fama, prestígio e rica conta bancária, os atores e atrizes do Regina Pacis, ao contrário, continuam subindo ao palco simplesmente porque amam atuar. E atuam com paixão, dedicação e brilho nos olhos, o mesmo brilho que enxergávamos no olhar do inesquecível ator Sergio Rosseti, quando o ouvíamos falar sobre o grupo, nas inúmeras vezes em que nos encontramos durante as suas habituais caminhadas pelas ruas do centro da São Bernardo que tanto amava e por ela era correspondido.                               

Do lugar que deve ter sido reservado para o povo das artes, o velho Antonino Assumpção deve estar exclamando: Pôxa! E não é que tudo valeu a pena!

Sunça, e vai continuar valendo, viu!?

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Cultura sem Carimbo VII

Dalila Teles Veras






A sétima edição do Ciclo Cultura sem Carimbo, promovida pelo Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC, recebeu depoimentos de representantes dos espaços culturais Komos e Gambalaia, o primeiro atuante desde 1995 e o segundo há 5 anos, que dignificam a produção cultural local, estabelecendo contato e trocas com gentes daqui e até d´além mar.



O ator, professor e diretor Joca Carvalho em seu longo e cativante depoimento, contou da trajetória de 20 anos da Cia. Komos de Teatro, nascida com um projeto de teatro na comunidade, com o espetáculo “Os Cavaleiros da Cornualha”, peça escrita por Mauro Silveira, parceiro de Joca até a atualidade. Estabelece, em 1995, um núcleo de pesquisa teatral, com ênfase na Comédia. Logo a seguir, em 1996, sempre interessados na comédia popular, mergulham no universo de Guimarães Rosa, com a pesquisa e montagem de várias peças que partem e são adaptadas da obra desse grande escritor brasileiro para reflexão sobre outras culturais.  “Os Cavaleiros da Cornualha”. Estabelecido desde 1998 no atual espaço físico à rua João Fernandes nº 18 em Santo André, local onde além da pesquisa, ensaios, encenação e temporadas dos próprios espetáculos, também são exibidos espetáculos  de companhias convidadas com quem estabelecem parcerias e também cursos.


Quando a companhia consegue eventuais parcerias, tem realizado o projeto “Teatro na Comunidade”, que é um curso gratuito de teatro iniciação para adolescentes, com aulas mitologia, prevenção contra drogas, tabagismo e alcoolismo. Tudo é realizado à custa de vontade e paixão de seus integrantes que mantêm outras atividades, como as de professores. Espetáculos como Teatragem, Um Doente Imaginoso e Milagre, Milagrim, Milhagrizinhozinhozinho são mantidas permanentemente em seu repertório, sendo que esta última é detentora de prêmios e temporadas longas e bem sucedidas. "O que me move é a vontade de fazer teatro. Paixão e vontade" disse o Joca, fundador e resistente.


Na sequência, Humberto Alex de Lima, idealizador e diretor do espaço Gambalaia há 5 anos, que nasceu em Santo André, foi trabalhar na Capital onde ficou até sua aposentadoria, quando retornou a sua cidade natal. O "vazio existencial" da vida sem uma atividade rotineira, acendeu nele uma antiga ideia de fazer algo voltado para as artes do palco, retornando também a uma atividade que desenvolveu na sua juventude nesta mesma cidade. Foi assim, alugou um espaço, aliás, muito próximo do local onde atua a Cia. Komos, a rua das Monções nº 1018, chamou alguns artistas de diversas áreas, como as artes plásticas (Damara Bianconi), música, teatro e literatura (Jurema Barreto de Souza e Zhô Bertholini), e, em 2000 abriu o Gambalaia. Com ênfase no teatro e na música, o espaço é ocupado por grupos que oferecem boas opções através de uma programação de qualidade que já totaliza mais de 600 apresentações, um número bastante significativo. O espaço é mantido pela cobrança de ingressos simbólicos e movido pela força da paixão do seu diretor.



Assim como nas edições anteriores, os depoimentos foram gravados em vídeo e passam a integrar o acervo do Núcleo Alpharrabio de Referência e Memória que fica à disposição de pesquisadores e interessados.


Cia. Komos de Teatro
Rua João Fernandes, 18 – Bairro Jardim – Santo André
http://ciakomosdeteatro.tumblr.com/

Espaço Gambalaia
Rua das monções, 1018 - Santo Andre - SP 
http://www.gambalaia.com.br/

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Cultura sem Carimbo VI - registro da reunião de abril 2015




A reunião de abril do Fórum Permanente de Debates Culturais retomou o Ciclo Cultura Sem Carimbo, organizado de forma a ouvir, debater e divulgar coletivos, iniciativas e acontecimentos culturais que estão ocorrendo na região, de forma autônoma, sem vínculos ou patrocínios oficiais. Nos cinco encontros anteriores foram ouvidos (e gravados) depoimentos de integrantes dos coletivos Batalha da Matrix - Parada Musical, de SBC,  Cia. do Nó (Santo André); Centro Recreativo e Cultural Alameda Glória (São Bernardo do Campo);  Grupo Folclórico Congada do Parque São Bernardo (São Bernardo do Campo); Ocupação Cuiabá - Portões que falam;  Sarau na Quebrada, Santo André; Sarau Lapada Poética, do Coletivo Tantas Letras, São Bernardo do Campo; e Sarau da Santa, Santo André.




Neste VI encontro, a prof. Raquel Quintino, cientista social, mestre em comunicação, e ativista social veio nos falar sobre a experiência de mobilização junto à Rádio Comunitária Z FM do Jardim Zaíra, em Mauá e do Movimento para Moradia na área do Chafik, assunto que, inclusive, foi objeto de sua dissertação de Mestrado em Comunicação Social pela UMESP.

Do belo e apaixonado depoimento da nossa convidada, extraímos estas notas:
"Nasci no Zaíra, cresci e estou sempre por lá. "Viver em Mauá" é um adjetivo, é um lamento e até motivo de chacota, mas é possível mudar o olhar para identificar muitas belezas.

Estive por algum tempo afastada de Mauá, mas quando voltei, munida de outros diferenciais, após ter passado pelo Ministério das Ciências e Tecnologia, Instituto Paulo Freire e outras experiências, vi a possibilidade de construção de algo. Os lugares periféricos quase nunca são vistos como o lugar do bem viver, da sociabilidade e do crescimento. As cercas, muros e catracas barram o acesso ao que a humanidade produz de melhor. É possível reinventar? É!




Um verso de Fernando Pessoa ("é da minha aldeia que eu posso ver o mundo"), que, inclusive,  virou epígrafe de abertura da minha dissertação, vai no sentido inverso do sentimento de quem mora em Mauá, mas leva a acreditar que é possível fazer de nossos lugares, o que a gente quiser, inclusive interferir na realidade, como interferimos.

O Jardim Zaíra apresenta a maior ocorrência de mortes em área de risco da cidade, território de ocupação irregular que teve início em meados da década de 1970.

Em 2011 ocorreu um trágico deslizamento do Morro do Macuco que acabou por detonar um  movimento pela Rádio Z FM que tinha como objetivo inicial alertar a comunidade em relação à gravidade provocada pela intensificação das mudanças climáticas e dos riscos na época das chuvas e que, em colaboração com a Associação para o Desenvolvimento Habitacional do Brasil criada em 2006 , cujo foco é a regularização fundiária daquela região, muito contribuiu para estimular a participação e organização local pelo direito à moradia. A principal ação foi a produção de 20 programas radiofônicos, transmitidos nas manhãs de sábado, nos quais colaborei, produzidos por cerca de 20 integrantes da ADEHAB, com o apoio dos colaboradores da Radio Z FM que exerceu um papel fundamental para provocar a tomada de consciência da urgência em relação às questões da moradia da área.




Assim, os movimentos populares se apropriaram daquele espaço de comunicação o que me motivou, além da participação, também realizar análise desse processo de comunicação comunitária. 
Os meios de comunicação, que deveriam fortalecer os diversos grupos humanos, atuam como um grande negócio controlado por um pequeno grupo que atendem aos interesses da elite brasileira. As rádios comunitárias têm um forte potencial de democratizar uma parcela dos meios de comunicação e por isso são muito perseguidas.




A Rádio Z FM, primeira rádio comunitária da cidade a receber a autorização para operar legalmente, tem como seu principal articulador Valmir Maia, que atuou intensamente em vários movimentos da cidade. Permanece atuante até hoje e é reconhecida como o principal veículo de comunicação do município e presta, ao longo destes anos, relevantes serviços à comunidade.

Mauá está no ABC e o ABC é um lugar de luta. É possível, sim, fazer com que as coisas aconteçam em Mauá, desde que possamos nos mobilizar e foi isso que fizemos."




O relato foi longo e apaixonante. Não há como não se contaminar com tamanha convicção às causas a que se dedica a Prof. Raquel (o ensino, a pesquisa e a militância social) a Prof. Raquel, quer junto à FAMA - Faculdade de Mauá, quer junto à Rádio Z FM e outras tantas frentes de atuação).

Saí, saímos do encontro menos céticos e menos desanimados. Ainda vale a pena acreditar em transformações pela organização e mobilização popular. (dtv)

terça-feira, 5 de maio de 2015

Dom Quixote ou A Arte de Namorar a Cidade*

Carlos Lotto
artista educador e produtor cultural
abril 2015

A cidade pela qual me enamoro é aquela que transcende a metrópole vazia de ética. É aquela para a qual quero ser visível, audível, tangível, por amá-la e ser por ela amado. Se enamorar da agitação do mundo para aquietar o alvoroço interior. Desapegar-se de si para encontrar um espaço comum: meu, teu, do outro, de todos. Amar a cidade é amar um ideal de totalidade, como um legítimo cavaleiro Quixote, como um poeta grego, com valores de superação, atemporais, como obra de arte, inspirado pelo sentido de pertencimento. A cidade sou eu!

Amo a cidade, amo a nação, amo a humanidade. Do aventureiro, eternamente sobrevivente e forasteiro, resgato a habilidade de fundir-me: a todas as gentes “não gentes”, aos vira-latas, aos incrédulos, decadentes, ruas, praças, becos, guetos.


Foto do painel de 3m executado pelos integrantes da oficina Letras do Mundo.

Lançar o amor que acorda a memória do amor aos ensimesmados e tristes, e assim buscar a Dulcinéia, o olho d’água, a negra do doce, com a coragem que liberta toda a humanidade esquecida e descuidada.

Acordar a cidade amorosa: a que insere o homem além da sua própria história; o espaço que protege a reflexão e o debate, e me faz novo para inventar novos hábitos comprometidos com o mundo humano, longe da barbárie.

Sem a cidade sou ninguém; sem espaço de participação sou ninguém; sem perspectivas sou ninguém. Sem a cidade me desmantelo, enfraqueço, desisto.

Quero tomar a cidade com a música sem fronteiras que existe dentro da gente e torná-la reflexo simultâneo dessa música. Arrebatar Sanchos e desprender-se do tempo, além da vida e além da morte, é a ação do poeta Quixote. Aquele que trará a qualquer espaço a “eternicidade”: o lugar do impossível feito possível, agora.

* Texto escrito para a exposição de abril/2015 do Projeto Quixotes, da Funsai- Ipiranga, coordenado pela atriz de Santo André, Andreia de Almeida, onde trabalhamos os heróis da cidade, através da arte. Inspirado nos adolescentes e nos artigos de Hanna Arendt sobre a crise da educação, a banalidade do mal e seu livro Homens em Tempos Sombrios, considero uma homenagem ao aniversario de Santo André.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Cultura Sem Carimbo IV - registro da reunião de setembro / 2014

Dalila Teles Veras
 
O Ciclo Cultura Sem Carimbo, promovido pelo Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC convidou para sua reunião do mês de setembro, a artista visual Sueli de Moraes (Suca) para uma agradável conversa acerca da Ocupação Cuiabá, iniciativa por ela idealizada e desenvolvida desde 2004.
 
 
A primeira realização, partiu das ideias debatidas com seus colegas de graduação na Faculdade de Belas Artes. A ideia era mostrar a arte que produziam naquele momento. Assim nasceu a Cuiabá 153 que, como o nome já indicava (trata-se do nome e número da Rua da residência da artista), foi aberta ao público na própria casa da artista, com direito a caldo de abóbora servido aos visitantes.
 Já na segunda Cuiabá 153, as obras foram especialmente desenvolvidas para a Residência e muitas delas ali mesmo produzidas. Os artistas convidados ocuparam todas as dependências térreas do sobrado (sala de estar, cozinha, banheiro, área de serviço e quintal (a família restou a privacidade do andar de cima - os quartos). Por um dia inteiro, a casa transformada em galeria recebeu visitantes e desenvolveu atividades artísticas como performance, números musicais, serviu acepipes e promoveu palestras sobre cultura e arte.
 
 
 
A mais recente, realizada neste ano de 2014, teve como proposta fazer arte pensando também na rua (Uma pequena rua sem saída) envolvendo também outros moradores. A ideia nasceu da vivência de uma de suas filhas que estudava na França e participou de uma "ocupação" denominada "janelas que falam". Daí para o "Portões que falam" foi um passo  e lá foi Sueli a campo para um longo e exaustivo trabalho (um ano) de convencimento dos vizinhos a cederem seus portões aos artistas para interferências. Muita desconfiança a princípio, com algumas resistências que permaneceram. Após a escuta dos moradores, os artistas desenvolveram projetos que dialogaram com a história daquelas casas, daqueles portões.


 
À medida que sua fala avançava, Sueli projetava imagens das ocupações artísticas, com interação entusiasmada dos presentes.
Como nem tudo é sonho, a realidade mostrou uma série de dificuldades como a falta de patrocínios para a produção das obras (o pouco traquejo dos artistas para isso e a falta de gente especializada no assunto em campo), a imprensa local não entendeu a proposta e pouco ou nada divulgou. A dificuldade maior, entretanto, foi "apresentar-se aos próprios vizinhos" : - Mas ela mora aqui? A divulgação corpo-a-corpo, com distribuição de filipetas da própria Suca entre os frequentadores dos parques e praças ao redor.
 
 
Por fim, artistas e moradores envolvidos num trabalho febril, num dia idem, verdadeiro acontecimento cultural. Oficinas para crianças, contação de histórias, apresentações teatrais, musicais, comidinhas, produtos com o logo da mostra, como coleção de "selos" com as obras expostas, camisetas e outros.
Houve de tudo, inclusive, como esperado, tentativas de apropriações indébitas por parte de políticos e gestores públicos em troca de "ajuda"e a natural resistência.
O fascínio da experiência que envolveu dezenas de artistas num trabalho insano de meses, despertou a vontade de expandi-la para outros portões, outras ruas, apropriação da tradição da "cultura da rua", da arte livre de paredes e guardas de plantão.
O depoimento apaixonado comoveu os presentes e a conversa rendeu trocas e muitas ideias. Daqui, ficamos a torcer para que a Suca e seu colegas não desistam e permaneçam na teimosia.
 

Ainda durante a reunião, constaram da pauta
informes gerais:
- Relato da proposta recebida do Secretário de Obras de Santo André, Paulinho Serra sobre a realização de uma "conversa" na Livraria Alpharrabio sobre o posicionamento do caso Sacilotto (Retorno da obra retirada da Oliveira Lima). Pedido negado. Optou-se por sugerir ao secretário que simplesmente cumpra o prometido na reunião pública do ano passado ou convoque uma audiência pública em equipamento idem.

 
-  Revelando SP - Morro do Querosene, 18ª edição (convite de Neusa Borges)

- Notícia da transformação do Grupo Folclórico Congada do Parque São Bernardo (Ditinho)

 

Fala do convidado Sérgio de Azevedo (prof. da Fundação das Artes de São Caetano do Sul  e FAAP) que veio nos dar notícias de sua atuação como tutor de um projeto da Universidade Federal da Bahia que orientará a elaboração de Planos Municipais de Cultura pelo Brasil e de um caso que acompanhou, ou seja, o relato do município de Três Corações-MG, cidade onde a prefeitura se negava a dar andamento à construção de políticas públicas para a área da cultura e uma ONG se organizou e mobilizou a sociedade civil e artistas para elaborar um bem sucedido projeto de lei de iniciativa popular. Fizeram uma consulta jurídica para o MInC, que informou ser legítima a iniciativa. A ideia poderia ser aplicada em Santo André, caso a Prefeitura continue ignorando a possibilidade da implantação de um Plano Municipal de Cultura, uma vez que temos já, reconhecida pelo MINC, uma Conferência Livre de Cultura. 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Alpharrabio: sementes vivas

Celso Horta*

 
     Não sei mais escrever. Talvez tenha vivido demais. Demasiados os invernos. Sem cuidados bastantes, talvez a alma tenha definhado. Os muitos rascunhos eletrônicos jamais desabrocharam em versos.
      Com o dedilhar ágil calejado na velha Olivetti, aprendi a atender as encomendas da dialética materialista. Encomendas que dividiam o mundo entre o positivo, o revolucionário, e o positivismo conservador do doutrinarismo idealista, que separavam os companheiros e os inimigos de classe.
     Escrevi muito ao longo destes anos. Ghostwriter, editorialista, projetista de castelos e executivo de sonhos. Sempre acreditando nas legiões de combatentes invisíveis, velhos conhecidos das muitas guerras enfrentadas. Tanta fé e esperança me fizeram desaperceber o isolamento cada vez maior. Neste lado esquerdo do mundo, quebrei meus dedos nos teclados de aço do pragmatismo contemporâneo.
     Por tudo isto, desaprendi a arte de escrever.
    Começar de novo. Aprender o sentido das palavras. Assombrar-se com as mensagens dos símbolos. Sem preconceitos, sem dogmatismos. Recuperar o sentido da dialética que não reconhece deuses, demônios, heróis e bandidos.
     Ou seja, recomeçar. Tudo de novo, como o neto recém-nascido. E como? Olhando ao redor em busca dos semelhantes, dos sedentos em aprender o sentido das coisas. Como na homenagem de Caetano a Carlos Marighella.
 
 foto: alice agrela teles veras

     No meio desta caminhada, por este deserto globalizado, a surpresa. A festa dos 21 anos da Alpharrabio, ontem, 21 de fevereiro de 2012. Um evento que vai ficar na história cultural do ABC. Uma brisa suave nascia do semblante efusivo da nossa escritora e agitadora cultural Dalila Teles Vera fazendo daquele bunker cultural da rua Eduardo Monteiro, em Santo André, um verdadeiro oásis.
     A alegria contagiante da nossa anfitriã testemunhava a riqueza simbólica de sua vida de pastora de idéias. De cada letrinha, dos milhares de livros que ocupam as prateleiras da Alpharrabio, e das centenas de edições que Dalila colocou no mundo.
     E eram centenas os que compartilhavam aquele momento de prazer. Centenas os que, como eu, ali se alimentavam avidamente do prazer de reencontrar sentido para cada conceito, para cada palavra cultuada ao longo da vida.
foto: alice agrela teles veras

     Entre os convidados, ali estava também o espírito de Salvador Bahia, o velho personagem de Possidonio Sampaio, que registrou o instante em que o vulcão social do ABC vomitou lavas. Atropelando-me nas minhas próprias incertezas perguntei-lhe:
     - E, então, meu caro Salvador Bahia, você acha que já viu tudo na vida?
     A resposta veio incontinenti:
     - É lógico que não. Ainda temos muito para ver.
     Foi o bastante para mim. Eu parecia recarregado de energia, pronto para esperar mais um século. Para reconhecer que somos muitos os que estão perplexos diante da vida. Os que não conseguem reconhecer as bandeiras que desfraldaram. Os que estão correndo atrás de repensar o simbólico para matar a sede de humanidade provocada pelo consumismo desenfreado do presente.
     Em síntese, para retomar o sentido das palavras e o caminho da humanidade. Foi este o sentido do aniversário da Alpharrabio. Do culto às letras gravadas na bandeira de Dalila. Outro dia um amigo, um engenheiro agrícola, me deu uma semente de caju. Eu a enterrei no vaso e passei a aguá-la todos os dias a espera do seu broto. Ainda nem sinal de vida. Mas vai brotar.
     Como vão brotar as idéias. Como as palavras vão se ressignificar. Como vão voltar a escrever os que, como eu, desaprenderam a arte. Afinal, as palavras são sementes imperecíveis. Como a Alpharrabio e os que cultivam as palavras.
     Enquanto, isto, há textos fantásticos que dialogam com este vazio. Como o que segue, de Lucy Dias e Roberto Gambini, autores que descobri em mensagens da internet.
     “Não houve síntese, porque há uma negação. Havia uma recusa, por parte do elemento dominante, de incluir a identidade dos dominados. Os filhos da terra são maltratados e desprezados. Nós precisamos de símbolos de comunhão, de síntese, de junção das partes. O Brasil tem muita energia vital, mas tem uma tristeza enorme. A tristeza daquele que não vê o seu valor reconhecido, daquele que sabe que podia ser diferente, que não tinha que ser assim, que arrasta uma coisa que não combina. Isso entristece porque não se consegue mudar, mas a gente sofre. Cada uma das barbaridades que acontecem a cada dia, as barbaridades brasileiras … Há um débito psíquico que, se não for formulado e trabalhado, não permitirá que surja um processo de conscientização da identidade. ...continua a haver um mecanismo perverso de impedir que pedaços da alma brasileira façam parte do todo. …começamos com um ato de destruição e de negação. …duas civil izações se encontram, se juntam, mas uma nega a outra. Aí reside o problema… não levamos em conta o contingente de alma daqueles que foram dominados. Então, aí se oculta uma sabotagem…a sociedade brasileira está amarrada mas não sintetizada …não houve amálgama, não houve síntese. Por quê? Porque houve uma negação. … não houve reconhecimento, comunhão, e continua sendo uma dimensão dramática, da qual só podemos ver os efeitos… isso cria um ser mal-resolvido. Nós precisamos de símbolos de comunhão, de síntese, de junção das partes para a produção de uma nova resultante. Esses símbolos nos orientariam para um tipo de reflexão coletiva que tivesse como objetivo superar esse estado que nos aprisiona. Isso nos ajudaria em termos de superação e de afirmação do Brasil… Essa situação que vivemos prende energia, impede o aparecimento do novo. É preciso soltar essas amarras para deixar fluir a criatividade cultural e social. Deixar sur gir novas formas de sociabilidade, que depois vão virar projetos políticos e sociais. Quando se destrava uma estrutura profunda que aprisiona a energia, essa força vem à tona. É disso que o Brasil precisa.

 * jornalista, mestre em comunicação e regionalidade pelo IMES