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quarta-feira, 14 de junho de 2017

SACILOTTO – crônica e escultura



Dalila Teles Veras

“Sacilotto é a melhor expressão da revolta suburbana. A revolta da lucidez dos que podem ver e plasmar a sobrecoisa que há na coisa, como nessa escultura de esquina que espera os passantes que não a esperam, mas com ela se incomodam (...) Seu ruidoso silêncio convida o homem comum à dúvida”


No último dia 06 de junho, durante a leitura pública de trechos do novo livro de José de Souza Martins, “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Editora UNESP/Imprensa Oficial, 2017), na Livraria Alpharrabio, o Professor Emérito da USP, nascido em São Caetano do Sul, e desde sempre atento à memória de nossa região, incluiu a leitura da crônica, denominada simplesmente “Sacilotto”. No debate que se deu a seguir, a obra Concreção 005 e sua longa e desastrada história foi um dos assuntos levantados pela plateia, com a denúncia de seu atual estado de degradação. Lembrou-se  ali da criminosa ação  lesa-pátria do poder público que, sem qualquer justificativa plausível, em 2013, retirou a obra de seu local de origem (calçadão da Rua Oliveira Lima com Monte Casseros) e, após dois anos de muitos protestos e movimentação populares, a recolocou, mas deslocada do local anterior e de maneira inadequada, rente ao chão, sobre um círculo de granito, contrariando completamente a forma original e o local concebido pelo autor.  Naquele momento foi sugerida e aprovada por todos os presentes a retomada do movimento “Cadê?”, com o encaminhamento de um ofício ao atual Prefeito da cidade de Santo André apelando para que o conjunto de erros seja reparado e a escultura volte ao seu local de origem e em sua forma original.



Eis que, por um desses quase “milagres”, leio no Diário do Grande ABC do dia seguinte (07.06) a notícia sobre a “recuperação e retorno da escultura ao seu local de origem e na sua forma original”. Viva!
Interessante sublinhar que o senhor Paulo Serra, atual prefeito de Santo André que ora anuncia o desejo de reparar o erro no qual houve tanto gasto e desgaste inúteis, era Secretário Municipal de Obras à época, esteve à frente daquela inexplicável e desastrosa ação, pela qual, inclusive, responsabilizou-se publicamente. Hoje, há um detalhe que faz toda a diferença nesse cenário: a Secretaria de Cultura é comandada por quem entende do riscado, conhece a cidade, tem a prática e sensibilidade para ouvir, bem como bagagem acumulada para discernir ações. Isso, certamente, pesou nessa tomada de decisão.
Assim, pela primeira em minha longa história de ativismo cultural não cumprirei um encargo, ou seja, o que me foi atribuído na reunião citada, ou seja, redigir um ofício, assinado coletivamente, para reiniciar um movimento popular. Como raras vezes acontece, o poder público agiu antes. Cumprimentos à Secretária de Cultural, Simone Zárate por ter lembrado que a escultura é parte integrante daquele lugar, em sincronia com os anseios da comunidade.
Encerro com a palavra do Professor Martins, na já citada crônica, que reforça o quanto a arte é importante nesta nossa história que é a história do trabalho:
 “Nas suas concreções, a linha reta se move, ondula, vive, é polissêmica, em rebeldia contra a unicidade da retidão linear. E desdiz o aparente, ao desvelar a poesia que há no trabalho”. 

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Cultura sem Carimbo VII

Dalila Teles Veras






A sétima edição do Ciclo Cultura sem Carimbo, promovida pelo Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC, recebeu depoimentos de representantes dos espaços culturais Komos e Gambalaia, o primeiro atuante desde 1995 e o segundo há 5 anos, que dignificam a produção cultural local, estabelecendo contato e trocas com gentes daqui e até d´além mar.



O ator, professor e diretor Joca Carvalho em seu longo e cativante depoimento, contou da trajetória de 20 anos da Cia. Komos de Teatro, nascida com um projeto de teatro na comunidade, com o espetáculo “Os Cavaleiros da Cornualha”, peça escrita por Mauro Silveira, parceiro de Joca até a atualidade. Estabelece, em 1995, um núcleo de pesquisa teatral, com ênfase na Comédia. Logo a seguir, em 1996, sempre interessados na comédia popular, mergulham no universo de Guimarães Rosa, com a pesquisa e montagem de várias peças que partem e são adaptadas da obra desse grande escritor brasileiro para reflexão sobre outras culturais.  “Os Cavaleiros da Cornualha”. Estabelecido desde 1998 no atual espaço físico à rua João Fernandes nº 18 em Santo André, local onde além da pesquisa, ensaios, encenação e temporadas dos próprios espetáculos, também são exibidos espetáculos  de companhias convidadas com quem estabelecem parcerias e também cursos.


Quando a companhia consegue eventuais parcerias, tem realizado o projeto “Teatro na Comunidade”, que é um curso gratuito de teatro iniciação para adolescentes, com aulas mitologia, prevenção contra drogas, tabagismo e alcoolismo. Tudo é realizado à custa de vontade e paixão de seus integrantes que mantêm outras atividades, como as de professores. Espetáculos como Teatragem, Um Doente Imaginoso e Milagre, Milagrim, Milhagrizinhozinhozinho são mantidas permanentemente em seu repertório, sendo que esta última é detentora de prêmios e temporadas longas e bem sucedidas. "O que me move é a vontade de fazer teatro. Paixão e vontade" disse o Joca, fundador e resistente.


Na sequência, Humberto Alex de Lima, idealizador e diretor do espaço Gambalaia há 5 anos, que nasceu em Santo André, foi trabalhar na Capital onde ficou até sua aposentadoria, quando retornou a sua cidade natal. O "vazio existencial" da vida sem uma atividade rotineira, acendeu nele uma antiga ideia de fazer algo voltado para as artes do palco, retornando também a uma atividade que desenvolveu na sua juventude nesta mesma cidade. Foi assim, alugou um espaço, aliás, muito próximo do local onde atua a Cia. Komos, a rua das Monções nº 1018, chamou alguns artistas de diversas áreas, como as artes plásticas (Damara Bianconi), música, teatro e literatura (Jurema Barreto de Souza e Zhô Bertholini), e, em 2000 abriu o Gambalaia. Com ênfase no teatro e na música, o espaço é ocupado por grupos que oferecem boas opções através de uma programação de qualidade que já totaliza mais de 600 apresentações, um número bastante significativo. O espaço é mantido pela cobrança de ingressos simbólicos e movido pela força da paixão do seu diretor.



Assim como nas edições anteriores, os depoimentos foram gravados em vídeo e passam a integrar o acervo do Núcleo Alpharrabio de Referência e Memória que fica à disposição de pesquisadores e interessados.


Cia. Komos de Teatro
Rua João Fernandes, 18 – Bairro Jardim – Santo André
http://ciakomosdeteatro.tumblr.com/

Espaço Gambalaia
Rua das monções, 1018 - Santo Andre - SP 
http://www.gambalaia.com.br/

segunda-feira, 10 de março de 2014

Pertencimento, ou sentimento?



Simone Massenzi Savordelli


Nesta época do ano, em que o carnaval aflora o sentimento da cultura popular brasileira que por meio desta grande manifestação mostra o que é a identidade do povo brasileiro, cada um, em seu âmago, faz o juízo sobre esta identidade.

Os costumes, a culinária, a língua, a arquitetura, as manifestações culturais, enfim, todos os elementos que possam identificar um povo fazem parte do aparato cultural que vai se arraigando ao longo do tempo, de modo que em qualquer parte do mundo os elementos se tornam únicos e de imediato reconhecimento.

Muito embora o carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo sejam os marcos avaliatórios desta manifestação de cultura brasileira, neste nosso imenso território existem tantas outras manifestações tão fortes quanto, e talvez até muito mais brasileiras e que vão sendo ensinadas de geração em geração por mestres da vida, elemento este que mais ainda faz arraigar a identidade cultural de um povo e de uma região. Bem, pelo menos no meu entender.

Tudo isso para dizer não só daquilo que identifica e qualifica um povo, mas também do elemento que se forma em torno da consciência social, do movimento político e dos usos que este povo faz dos equipamentos públicos e da própria sociedade.

A arquitetura, as cidades, as ruas, os bairros, o comércio, a vida... Tudo se forma, evolui, constrói, ou destrói à partir da consciência do povo; do que a sociedade como um todo pensa de si mesma, deseja para si e para o futuro.

O coletivo exerce um poder sobre o indivíduo e faz uma força plena girar uma engrenagem que vai para frente, ou retrocede, tudo conforme esta consciência social e conforme o que o povo sente de si mesmo.

Em algumas regiões vemos as cidades e seus equipamentos públicos como praças e parques bem preservados, bem cuidados, sem lixo, sem destruição. Pode até ser que os governantes destas regiões exerçam com maior afinco o seu papel e façam uma manutenção mais eficiente e rápida. Mas, também pode ser que o povo que habita estas regiões tenha uma consciência de pertencimento maior e, por isso, exerça com maior afinco o seu papel e preseva os equipamentos públicos, sem destruição, com o zelo necessário daquilo que é do povo por natureza.

Nos povos mais antigos, o sentimento de pertencimento sobre o equipamento público é expresso com veemência. Talvez pela consciência da crueldade da destruição advinda de guerras, de impérios sobre impérios. Talvez porque exista a consciência do “valor monetário” e do “valor cultural” que recai sobre todo o equipamento público, tido pelas ruas, parques, praças, prédios públicos, monumentos, enfim, tudo aquilo que é da sociedade. Tudo aquilo que a própria sociedade cria e mantém.

Este elemento: o sentimento de pertencimento, deveria nos seguir diariamente. Deveríamos olhar para a nossa cidade com o mesmo carinho que olhamos para dentro de nossas casas. Afinal, a nossa cidade é a nossa casa.

Nós devemos utilizar as nossas ruas, parques e praças com o mesmo carinho e cuidado com que utilizamos as nossas casas. Devemos manter limpo, em ordem, sem destruição, sem pichação. Nós devemos exigir dos nossos governantes uma constante e rápida manutenção destes equipamentos para que eles sempre estejam prontos e disponíveis à sociedade que é sua verdadeira proprietária e possuidora.

Nós devemos criar, ou fortalecer, uma consciência coletiva do pertencimento e, para isso, podemos nos utilizar da força dos coletivos e de seus organizadores que podem fazer ações em prol da preservação e manutenção das nossas cidades. Vamos cuidar para ter para sempre!

As manifestações culturais, assim como esta do nosso carnaval, são feitas nas cidades. Será que vemos como as cidades ficam após a passagem destas manifestações? Como deixamos nossas casas, quando saímos? Como queremos a nossa casa quando recebemos um visitante?

Por esta reflexão deixo que todos pensem em como irão usar e cuidar das praças, parques e ruas. Como se sentirão quando verem alguém jogando lixo na rua, pichando uma parede, quebrando um banco de praça, quebrando um chão de praça com uma utilização indevida, destruindo um prédio público, desrespeitando um monumento marco da cidade?   

Pertencimento, ou sentimento? A cidade nos pertence, como a sentimos quando a olhamos?

Nós criamos a consciência social. Nós criamos a nossa identidade. Nós somos os donos de nós mesmos. Se cada um fizer um pouquinho, todos farão melhor!


terça-feira, 27 de agosto de 2013

In Memorian


Simone Massenzi Savordelli

Em tempos de perdas, muitas perdas, sinto-me desalmada. Explico:

A palavra “perda”, segundo o famoso “Aurélio”, significa: 1. Ato ou efeito de perder. 2. Morte, falecimento. 3. Extravio, sumiço. 4. Dano total, destruição.

Penso que, todos os dias, sofremos perdas. Algumas até suportáveis e fatos da vida. Outras, nem tanto. Perdemos coisas, bens preciosos, bens insignificantes, opiniões, tempo, paciência, ânimo, sonhos. Perdemos pessoas. Perdemos o que as pessoas nos deixam.

Diante de tantas perdas, devemos fazer um esforço maior para manter a memória do que realmente importa. A memória das pessoas pelo que foram e pelo que fizeram. A memória da cidade pela arquitetura, costumes e tradição.

É um esforço tão grande e com tão pouco reconhecimento de valor. É um esforço que, nem sempre, dá conta de conter certos disparates e certos esquecimentos.

Manter a memória exige um constante movimentar a vida daquele que perdemos e um constante vigiar. No menor fechar de olhos, pronto! Vem o esquecimento, total e absoluto!

Penso que as pessoas que mais desejam serem lembradas (in memorian) são os artistas, os pensadores, os poetas e todos aqueles que extravazam sua criatividade em ações concretas. A sua produção será o objeto de sua memória e, consequentemente, a necessidade de sua preservação.

Os nossos antepassados também desejam serem lembrados pelo que construíram, pela cidade que pisaram e pelos costumes que criaram. Consequentemente, prédios históricos, ruas, praças, bares e outros equipamentos devem ser preservados para guardar a memória, a nossa memória, o que vivemos antes de nós mesmos.

No primeiro plano, o do artista, as famílias encontram inúmeras dificuldades e inúmeros acontecimentos fortes o bastante para uma boa dose de desânimo. Mas, a família possui a força do sangue e mesmo que seu esforço não possa alcançar a humanidade, alcança a si mesma e a todos que a rodeiam. A preservação vai se mantendo, sabe-se lá como?!

No segundo plano, o da cidade, aí a coisa complica, e muito! Quando menos esperamos vem um trator e derruba tudo. No dia seguinte há apenas o vazio e algumas fotos e algumas histórias que, com o passar do tempo, entrarão para a conta da perda.

No lugar do vazio, tenta-se colocar a modernidade que, simplesmente, ignora tudo o que existiu antes dela e para que ela mesma pudesse existir.

Esta melancolia toda me vem aos olhos todos os dias quando abro a janela e vejo a praça da Igreja Matriz totalmente cimentada. Faltam-lhe os velhos bancos e tantas árvores! Até as pombas sumiram. A Igreja, hoje, de expressão possui somente a cor e a vontade de atrair mais fiéis. A Capelinha resiste bravamente rodeada por cimento e pessoas desinteressadas, ali onde cresceu uma ampla calçada em seu entorno e ela quase é uma intrusa que atrapalha o caminho. Sua cor totalmente destoante da Igreja Matriz a faz um ser estranho pela falta da preservação da memória de sua cercania. Prevalece o progresso!

Fatos outros, de perdas memoráveis, me causam melancolia - se é que me faço entender?! A retirada da obra de Sacilotto do calçadão da Oliveira Lima, em Santo André. Sem explicações. A destruição do Teatro Carlos Gomes. As chaminés das lembranças de Teles! Tantos poetas não mais lidos... Quantas outras que, até de minha memória desta vida ainda curta, já se foram!

O que fazer para evitar tantas perdas e para resgatar a nossa própria existência?


Sim, desalmada. Falta-me, agora, perder a alma, mas não a esperança!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Festa de Ogum

*Dani Moreno
O Brasil de muitas cores, ritmos e sabores é fruto da influência da cultura negra, cuja grandeza resistiu ao tempo e às dores e hoje está enraizada em nossa forma de viver. E assim sendo, não há como haver distinção, pois nos tornamos um único povo. Muitos não se dão conta dessa rica influência e professam ideias contrárias, fazendo surgir a urgente necessidade de pontuar e trazer à luz a beleza da raiz Afro formadora do povo Brasileiro. A IV Festa de Ogum de SBCampo, com seu enfoque cultural, tem como objetivo lembrar a população que a cultura afrodescendente está presente em nosso dia a dia na musica, na culinária, na vestimenta, na fé. As apresentações artísticas que a festa trará, como a congada, a capoeira, o maculele, o maracatu, o samba, a dança, dentre outros, mostrará de onde vêm os ritmos e danças Brasileiras. A Feira Afro que acontece no mesmo local e simultâneo ao evento, nos lembrará de onde vêm as roupas, objetos de decoração e comidas típicas, presentes nas mesas brasileiras. O respeito e amor à Terra, aos animais e aos elementos de constituição de nosso planeta, e a preocupação com a preservação dos recursos naturais, largamente difundido e compartilhado por todos, é a base da religião africana, que será elucidada na IV Festa de Ogum, através da representação dos mitos yorubanos.

Preservando e exaltando a cultura afro, a IV Festa de Ogum de SBCampo desempenha papel fundamental na constante luta contra o preconceito e discriminação, nos lembrando que a identidade Brasileira é branca, negra, amarela, indígena, não havendo como pontuar onde um povo começa e onde o outro termina.
A Festa de Ogum de SBcampo, que está em sua 4ª.edição tem como idealizadora e organizadora a respeitada presidente da AFECAB Iyalorixa Maria Emilia Campi, representante dos povos de terreiro (Umbanda e Candomblé) e referência internacional por sua participação na luta contra o preconceito, o racismo, a liberdade religiosa e a inclusão social, a anos praticando, lutando e promovendo a preservação da cultura afro-brasileira.


A IV Festa de Ogum de SBCampo, realizar-se-á no dia 19/maio/2013 a partir das 11:00hs. No Ginásio do Baetão sito à Avenida Armando Italo Setti, 901 – Baeta Neves – SBCampo – SP
Participem desse evento e façam uma viagem histórica e cultural nas raízes afro-brasileiras. ENTRADA FRANCA.
* Dani Moreno (Bacharel em Ciências Jurídicas – Consultora Jurídica da AFECAB)

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Apropriação social, resistência e preservação do patrimônio


Silvia Helena Passarelli*
O Cine-Teatro Carlos Gomes é um edifício exemplar na cidade de Santo André, SP. Por muitas décadas durante o século XX, foi importante centro de encontro social e difusão cultural para toda a região ABC. Estes atributos conferiram ao edifício a categoria de bem cultural do município em 1992, quando foi tombado pelo Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico-Urbanístico e Paisagístico de Santo André (COMDEPHAAPASA).
Enquanto bem cultural tombado, o edifício do Cine-Teatro Carlos Gomes possui um valor simbólico, marco de identidade da comunidade andreense e de toda a Região ABC. Sua preservação foi reclamada pela população regional quando de seu fechamento, em 1986, momento em que o cinema cerrou suas portas e foi ocupado por uma loja de tecidos e um estacionamento.



Muitas fases de um edifício.
O Cine Teatro Carlos Gomes de 1925 até os nossos dias


Foi a luta pela defesa do Cine-Teatro que chamou a atenção das autoridades que decidiu pela desapropriação do edifício (em 1990) e, posteriormente pelo tombamento do imóvel pelo COMDEPHAAPASA (em 1992), bem como diversas ações que garantiram o funcionamento do edifício como equipamento cultural e referência para a memória local, apesar de diversas intervenções anteriores que adulteraram a fachada frontal do edifício. Este momento da história da cidade e do Cine-Teatro Carlos Gomes foi marcado por um esforço coletivo de toda a sociedade pela preservação de sua memória. O Diário do Grande ABC, em editorial de 17 de setembro de 1987 anunciava: “Somente a união de todos poderá manter vivo na memória o esforço feito para preservá-la".
Reaberto como espaço cultural, com recursos públicos em parceria com a iniciativa privada, em festa em 11 de dezembro de 1997, após um longo processo que contou com a desapropriação do imóvel e posteriormente a consagração do bem como patrimônio cultural por meio do tombamento, ainda clamava por recursos para recuperação da infraestrutura (especialmente da eletricidade) e da estrutura do telhado. A falta de investimentos na manutenção do edifício fez com que fosse condenado pela Defesa Civil e interditado em 2009 para qualquer atividade. Segundo documento avaliação técnica da Prefeitura de Santo André, “o local era insalubre, não apenas pelo cheiro forte de mofo e presença de insetos, mas principalmente pela falta de ventilação, problemas visíveis na parte elétrica e a ausência de saídas de emergência em caso de acidente” (Projeto de revitalização do Teatro Carlos Gomes, mar, 2011, Processo Administrativo nº 27.259/2011, p. 6; Inquérito Civil nº 3409/12 p. 70).
Foi com esta proposição que a Prefeitura de Santo André submeteu ao COMDEPHAAPASA uma proposta de “revitalização” do edifício apresentando um estudo preliminar para a implantação de uma “Sala de Cine-Concerto” em junho de 2011. Para tanto, previa a reforma do edifício com ampliação de área a partir da desapropriação de terreno na Rua Dona Gertrudes de Lima, vizinha ao imóvel e pertencente ao Banco do Brasil. A proposta, no entanto, tinha caráter preliminar, se enquadrava como uma consulta ao Conselho para facilitar a captação de recursos financeiros.
Ignorando os ritos para a intervenção em um bem tombado, a Prefeitura iniciou a intervenção no edifício: os conselheiros foram silenciados por meio de uma longa ação que envolvia a falta de clareza na informação e retórica nos discursos, desqualificando qualquer abordagem técnica que se fazia dentro do Conselho ou fora dele, em artigos que veicularam na imprensa. Foi a retirada da laje frontal, marca do crescimento das salas de cinema de rua implantada em meados do século XX, que indignou a população e possibilitou a articulação de produtores culturais, agentes de preservação da memória e imprensa em torno da possibilidade de perda do velho Carlos Gomes. Depois de um período de silêncio, a retirada da laje frontal do edifício mobilizou a opinião pública na organização de manifestações na frente do Cine-Teatro, nas reuniões do Conselho de Defesa do Patrimônio, na imprensa e nas redes sociais da internet, garantindo a paralisação da obra por ordem do Ministério Público.


Manifestação em defesa do Cine Teatro Carlos Gomes
realizada em 28 de julho (fotos: Nario Barbosa)
 
As lições aprendidas neste processo chamam a atenção para o tratamento que se deve dar à preservação da memória de Santo André ou do ABC Paulista, região industrial nascida como subúrbio de São Paulo, região periférica que não recebeu a atenção de grandes obras artísticas e monumentais. Nesse contexto, o “Carlos Gomes” torna-se um símbolo da resistência cultural. Ao mesmo tempo, põem à luz a necessidade de fortalecer as práticas de educação patrimonial que envolva conselheiros representantes da sociedade civil e agentes públicos, aperfeiçoando a elaboração de pareceres técnicos e fortalecendo o debate da preservação junto a diferentes áreas técnicas da Prefeitura. Ao mesmo tempo, é fundamental a integração da ação preservacionista com as políticas de desenvolvimento local, de modo a evidenciar os conflitos e permitir a formulação da política de gestão do patrimônio que inclua a execução de inventário de reconhecimento.
Infelizmente, a prefeitura não traz alternativas claras para a intervenção no edifício. Inicialmente, em 18 de janeiro de 2013 afirma pretender retomar as obras do antigo edifício adotando o projeto equivocado da administração anterior, projeto que foi rechaçado pela população em audiência pública promovida na Câmara de Santo André em 27 de julho, quando a população declarou sua intenção de ver funcionando no local um espaço de múltiplo uso, com várias possibilidades, um teatro de variedades (http://www.readmetro.com/en/brazil/metro-abc/). Depois, sem negar publicamente o artigo impresso, solicita uma audiência pública em véspera de feriado para debater diretrizes para uso no edifício, porém, na realidade, pretende consolidar a formação de uma comissão de produtores culturais para discutir o tema. Propõe, ainda, estratégias de proteção das ruínas do edifício apresentando ideias como a troca do telhado e a construção de vigas de concreto para sustentação das paredes (por que concreto? Uma estrutura metálica não ficaria mais leve nas ruínas? Ninguém saberia responder). Esquece, porém, que as pinturas internas do edifício continuam desprotegidas.
Sobre o uso, a prefeitura propõe o isolamento do edifício do contexto urbano e se recusa a debater os usos deste espaço e suas relações com o corredor cultural da área central e os usos já presentes nos demais lugares de cultura e memória da área central que deveriam se complementar. Caminha, assim, no descompasso com as proposições mais atuais sobre a preservação do patrimônio cultural que põe foco nas relações do bem com o desenvolvimento socioeconômico da cidade e com as relações dos habitantes com o patrimônio e a cidade.
Sem dúvida é um avanço propor o debate público das possibilidades de uso de um patrimônio cultural, no entanto é fundamental garantir a sua inserção com a dinâmica urbana e com as transformações do ambiente e suas relações com os demais espaços culturais da área central, buscando a complementaridade dos possíveis usos culturais da área central. Ao mesmo tempo, é preciso esclarecer quem serão os interlocutores deste processo de discussão: serão os agentes públicos, conhecedores do potencial de uso dos espaços culturais da área central, aqueles que permanecerão na prefeitura para manter as atividades propostas ou os secretários de plantão, que não permanecem, que são substituídos a cada ciclo de governo.
As manifestações em defesa do Cine-Teatro Carlos Gomes põem à mostra a importância do valor afetividade em relação à preservação. Não é o edifício o elemento principal de preservação: a população atribui àquele lugar um valor simbólico que está além da arquitetura, está nas atividades culturais que marcaram a tela do cinema, o palco do teatro, os encontros no auditório. 
Reforça a importância de pensar nas questões culturais ao tratar as intervenções na cidade, sejam elas pontuais, como é o caso da intervenção deste edifício, desconectado com o debate sobre a cidade, sejam ao tratar da revitalização, requalificação ou reintegração de lugares, de bairros, ou, no dizer de Lilian Fessler Vaz, trata-se da “utilização da cultura como instrumento de revitalização urbana, faz parte de um processo bem mais vasto de utilização da cultura como instrumento de desenvolvimento urbano” (VAZ, L.F.. A culturalização do planejamento e da cidade: novos modelos? Cadernos PPG-AU FAUFBA. Territórios urbanos e políticas culturais, Salvador, Ano 2, 2004. p. 32)
Ou ainda, de se evitar a espetacularização, estratégia fundamental do marketing urbano (e diria eu, neste caso, de marketing político, pois utilizado às vésperas das eleições), e construir uma nova imagem para a cidade, mesmo com um discurso de preservação e de preocupação com a memória local. A proposta da Prefeitura de Santo André ao criar um local de excelência para a música orquestral roubava do Cine-Teatro Carlos Gomes tudo que ele possuía de popular: as lembranças da sessão amendoim, da pipoca na entrada do cinema, dos bailes carnavalescos dos anos 1950, dos shows de rock do final dos anos 1990.
As lições aprendidas neste processo chamam a atenção para o tratamento que se deve dar à preservação da memória de Santo André ou do ABC Paulista, região industrial nascida como subúrbio de São Paulo, região periférica que não recebeu a atenção de grandes obras artísticas e monumentais. Clamam, ainda, por uma política de preservação do patrimônio para esta mesma cidade industrial e operária, uma política de patrimônio cultural que envolva os moradores no debate sobre que valores devem ser preservados e como isso deve ocorrer.
*Dra em Arquitetura e Urbanismo, professora adjunta da Universidade Federal do ABC

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Alpharrabio: sementes vivas

Celso Horta*

 
     Não sei mais escrever. Talvez tenha vivido demais. Demasiados os invernos. Sem cuidados bastantes, talvez a alma tenha definhado. Os muitos rascunhos eletrônicos jamais desabrocharam em versos.
      Com o dedilhar ágil calejado na velha Olivetti, aprendi a atender as encomendas da dialética materialista. Encomendas que dividiam o mundo entre o positivo, o revolucionário, e o positivismo conservador do doutrinarismo idealista, que separavam os companheiros e os inimigos de classe.
     Escrevi muito ao longo destes anos. Ghostwriter, editorialista, projetista de castelos e executivo de sonhos. Sempre acreditando nas legiões de combatentes invisíveis, velhos conhecidos das muitas guerras enfrentadas. Tanta fé e esperança me fizeram desaperceber o isolamento cada vez maior. Neste lado esquerdo do mundo, quebrei meus dedos nos teclados de aço do pragmatismo contemporâneo.
     Por tudo isto, desaprendi a arte de escrever.
    Começar de novo. Aprender o sentido das palavras. Assombrar-se com as mensagens dos símbolos. Sem preconceitos, sem dogmatismos. Recuperar o sentido da dialética que não reconhece deuses, demônios, heróis e bandidos.
     Ou seja, recomeçar. Tudo de novo, como o neto recém-nascido. E como? Olhando ao redor em busca dos semelhantes, dos sedentos em aprender o sentido das coisas. Como na homenagem de Caetano a Carlos Marighella.
 
 foto: alice agrela teles veras

     No meio desta caminhada, por este deserto globalizado, a surpresa. A festa dos 21 anos da Alpharrabio, ontem, 21 de fevereiro de 2012. Um evento que vai ficar na história cultural do ABC. Uma brisa suave nascia do semblante efusivo da nossa escritora e agitadora cultural Dalila Teles Vera fazendo daquele bunker cultural da rua Eduardo Monteiro, em Santo André, um verdadeiro oásis.
     A alegria contagiante da nossa anfitriã testemunhava a riqueza simbólica de sua vida de pastora de idéias. De cada letrinha, dos milhares de livros que ocupam as prateleiras da Alpharrabio, e das centenas de edições que Dalila colocou no mundo.
     E eram centenas os que compartilhavam aquele momento de prazer. Centenas os que, como eu, ali se alimentavam avidamente do prazer de reencontrar sentido para cada conceito, para cada palavra cultuada ao longo da vida.
foto: alice agrela teles veras

     Entre os convidados, ali estava também o espírito de Salvador Bahia, o velho personagem de Possidonio Sampaio, que registrou o instante em que o vulcão social do ABC vomitou lavas. Atropelando-me nas minhas próprias incertezas perguntei-lhe:
     - E, então, meu caro Salvador Bahia, você acha que já viu tudo na vida?
     A resposta veio incontinenti:
     - É lógico que não. Ainda temos muito para ver.
     Foi o bastante para mim. Eu parecia recarregado de energia, pronto para esperar mais um século. Para reconhecer que somos muitos os que estão perplexos diante da vida. Os que não conseguem reconhecer as bandeiras que desfraldaram. Os que estão correndo atrás de repensar o simbólico para matar a sede de humanidade provocada pelo consumismo desenfreado do presente.
     Em síntese, para retomar o sentido das palavras e o caminho da humanidade. Foi este o sentido do aniversário da Alpharrabio. Do culto às letras gravadas na bandeira de Dalila. Outro dia um amigo, um engenheiro agrícola, me deu uma semente de caju. Eu a enterrei no vaso e passei a aguá-la todos os dias a espera do seu broto. Ainda nem sinal de vida. Mas vai brotar.
     Como vão brotar as idéias. Como as palavras vão se ressignificar. Como vão voltar a escrever os que, como eu, desaprenderam a arte. Afinal, as palavras são sementes imperecíveis. Como a Alpharrabio e os que cultivam as palavras.
     Enquanto, isto, há textos fantásticos que dialogam com este vazio. Como o que segue, de Lucy Dias e Roberto Gambini, autores que descobri em mensagens da internet.
     “Não houve síntese, porque há uma negação. Havia uma recusa, por parte do elemento dominante, de incluir a identidade dos dominados. Os filhos da terra são maltratados e desprezados. Nós precisamos de símbolos de comunhão, de síntese, de junção das partes. O Brasil tem muita energia vital, mas tem uma tristeza enorme. A tristeza daquele que não vê o seu valor reconhecido, daquele que sabe que podia ser diferente, que não tinha que ser assim, que arrasta uma coisa que não combina. Isso entristece porque não se consegue mudar, mas a gente sofre. Cada uma das barbaridades que acontecem a cada dia, as barbaridades brasileiras … Há um débito psíquico que, se não for formulado e trabalhado, não permitirá que surja um processo de conscientização da identidade. ...continua a haver um mecanismo perverso de impedir que pedaços da alma brasileira façam parte do todo. …começamos com um ato de destruição e de negação. …duas civil izações se encontram, se juntam, mas uma nega a outra. Aí reside o problema… não levamos em conta o contingente de alma daqueles que foram dominados. Então, aí se oculta uma sabotagem…a sociedade brasileira está amarrada mas não sintetizada …não houve amálgama, não houve síntese. Por quê? Porque houve uma negação. … não houve reconhecimento, comunhão, e continua sendo uma dimensão dramática, da qual só podemos ver os efeitos… isso cria um ser mal-resolvido. Nós precisamos de símbolos de comunhão, de síntese, de junção das partes para a produção de uma nova resultante. Esses símbolos nos orientariam para um tipo de reflexão coletiva que tivesse como objetivo superar esse estado que nos aprisiona. Isso nos ajudaria em termos de superação e de afirmação do Brasil… Essa situação que vivemos prende energia, impede o aparecimento do novo. É preciso soltar essas amarras para deixar fluir a criatividade cultural e social. Deixar sur gir novas formas de sociabilidade, que depois vão virar projetos políticos e sociais. Quando se destrava uma estrutura profunda que aprisiona a energia, essa força vem à tona. É disso que o Brasil precisa.

 * jornalista, mestre em comunicação e regionalidade pelo IMES

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Para não falar de sentimentos

Simone Massenzi Savordelli

Engajada que estou com as questões culturais de nossa região, fui tomada por uma gratificante atribuição em participar do Fórum Permanente de Debates Culturais do Grande ABC, e a engrenagem natural da participação e do afetuoso acolhimento de todos os integrantes da equipe me levou à este lugar escrito.
No ponto de partida veio a dificuldade de “o que escrever” e “como escrever”, sendo uma simples curiosa.
Eis que os pensamentos não descansam e a todo instante os sentidos ficam aguçados em busca de ideias e ideais.Tornei-me pessoa de olhar mais atento e sensível. Os detalhes passam a ter outra importância.
O pensar incessante faz sempre refletir no passado e seguir para o caminho da memória com o relevante questionamento sobre o quanto a preservação da memória pode ser esquecida. A memória esquecida. Um tanto triste.
Falar em preservação da memória remete à lembrança simples de museus, de conjuntos arquitetônicos e monumentos que devem ser mantidos, documentos e registros que precisam ficar bem arquivados, fotos que devem ficar em gavetas e histórias que nunca são contadas.
É um pensamento muito simplista tendo em vista que a memória, assim como a cultura, é um direito do cidadão e faz parte do patrimônio imaterial da sociedade, conforme consta da Constituição Federal, artigo 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (...)”.
Todo o conjunto de ações dos nossos antepassados, não só na construção arquitetônica das cidades, mas que difundiram costumes, tradições, expressões culturais e que foram noteadoras da evolução social são fundamentais ao estado da sociedade atual e ao futuro.
Falar em memória é remeter à necessidade da preservação destas ações e de suas consequencias reveladas nas mais variadas formas e nos mais variados meios de expressão e de comunicação. Mas, falar em preservação não significa limitar a consciência simplista de uma sociedade guardiã que abraça e fecha a memória em um grande baú.
A preservação da memória deve visar a publicidade destas ações, deve priorizar a disponibilidade dos bens públicos ao acesso da população, com medidas socioeducativas para o desenvolvimento do cidadão e do pensamento crítico.
Preservar memória não significa manter o “velho” como antigo, mas sim tornar o passado conhecido, atual e uma ferramenta de instrução e de formação. Não pode ter limite na contação da história, a história deve ser um instrumento de saber e de reflexão.
A preservação da memória dentro de uma valoração intangível deve ser transformada em um bem material calcado na origem que estimula não só o senso crítico do cidadão, mas que também possa ser um objeto de transcedência que leve o olhar ao estado de prazer, beleza, contemplação e emoção.
O estímulo dos sentimentos que tocam o intangível deve servir como fundamento para a apropriação da arte, da poesia, da literatura, da música, da dança, da religiosidade e das manifestações folclóricas como expressão material de cultura e como resultado de reflexão e de desenvolvimento educacional.
Inculcar. Repetir várias vezes para gravar no espírito sentimentos de preservação à partir dos lares pela tradição, pela história da própria família, pela importância dos objetos familiares e pela permanência efetiva das sensações que são descobertas com o redescobrir todas as facetas do passado, prestigiando os sonhos, os mitos, o imaginário. Partir do individual para o coletivo em prol do desenvolvimento social.
Preservar para redescobrir. Preservar para tornar conhecido. Preservar para termos onde nos agarrar e para não perdermos a nossa identidade. Preservar para educar.
Para não falar em sentimentos, prefiro falar em memória ativa, aquela que se mantém viva e gera fazer. 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Comida é cultura


Neusa Borges

Comida não é apenas o combustível para manter o nosso corpo vivo: envolve saberes, carrega tradições e é parte de nosso patrimônio cultural. Portanto, esses fatos não deveriam ser desconsiderados pelos órgãos responsáveis pela defesa da qualidade daquilo que levamos à boca.

O jornal O Estado de São Paulo, através do suplemento Paladar, vem denunciando as dificuldades dos produtores artesanais diante das exigências impostas pelos órgãos que cuidam de normatizar e inspecionar os alimentos no País.

O queijo canastra de Minas, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial, e até virou tema de documentário, tem cruzado a fronteira do Estado de forma clandestina, pois o produtor não consegue atender às exigências do Serviço de Inspeção Federal (SIF), vinculado ao Ministério da Agricultura.

No Nordeste, os coalhos e o marajoara, ambos feitos de forma artesanal, também estão lutando para sair da ilegalidade.

Recentemente, li no jornal o desabafo de d. Gasparina, que após 36 anos fazendo e comercializando doces na cidade de Araxá, em Minas Gerais, se viu obrigada a pendurar os seus tachos de cobre, em atendimento à resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária ( Anvisa ), que proíbe o contato de alimentos com utensílios de cobre.

Segundo a doceira, ao ser esfregado com vinagre e sal grosso, o tacho de cobre não oferece perigo algum para a saúde. Mas, como não quer agir de forma clandestina, disse, prefere desistir de continuar usando os tachos herdados da avó do marido e da sogra.

Ao ser questionada sobre as restrições, a Anvisa afirmou que a norma que proíbe o contato de alimentos em recipientes de cobre deve passar por revisão, uma vez que há análises indicando quantidade insignificante do elemento nos doces feitos com os tachos no País.

A legislação também tem amargado a vida do pequeno produtor de mel de abelhas nativas, pois, para atender às normas vigentes, é necessário investir cerca de R$ 50 mil.

Os equipamentos de madeira usados nas cozinhas, tais como a colher de pau, a tábua de corte, rolo e pilão, passaram a ser substituídos pelos de plástico, uma vez que aqueles passaram a ser vistos como fontes de contaminação dos alimentos. No entanto, durante um debate com chefs  de cozinha e especialistas, a gerente-geral de Alimentos da Anvisa admitiu que ainda não há estudos que comprovam que o plástico é mais higiênico que a madeira.
O problema é que a norma que serve de base para a fiscalização, embora sexagenária, está desatualizada até os dias de hoje.

No dia 29 de março de 1952, o então presidente Getúlio Vargas assinou o decreto que instaurou o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (o Riispoa), contendo mais de 900 artigos. De lá para cá, o Rispoa passou por alterações em 1962, 1996 e 2010. Porém, afirmou Roberto Smeraldi, gastrônomo e diretor da organização Amigos da Terra, “trata-se de algo fora de sintonia com a realidade do Brasil, do consumo e da tecnologia de hoje. Estamos defasadíssimos”.

No ano de 2008, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em reconhecimento ao atraso da lei, propôs uma revisão geral. Ocorre que o novo regulamento não tem previsão de ser publicado e, enquanto não há mudanças, os nossos pequenos produtores estão submetidos às normas que regulam as grandes indústrias.

Tentando alertar para o fato de que a cozinha tradicional do Brasil estava ameaçada, um ano atrás o Paladar publicou o Manifesto Cozinhista Brasileiro. Mais recentemente, o assunto voltou à tona, com o lançamento do Manifesto Cozinhista Brasileiro Parte II – Conversa com a Anvisa. O debate, realizado durante o 6º Paladar – Cozinha do Brasil, reuniu representantes da Anvisa, chefs, produtores e especialistas.

Certamente, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso se preocupa e deve, sim, se preocupar com a qualidade da comida que ingere; no entanto, é preciso uma maior flexibilidade com as normas, para não deixar na clandestinidade os produtores artesanais.

Há especialistas que entendem que não se trata de atualizar o Riispoa, mas criar novo marco legal com regulamento alternativo para produtos artesanais.

O fato é que, se houver mais diálogo entre as autoridades que cuidam da fiscalização com produtores, chefs e técnicos, é possível encontrar um equilíbrio entre saúde e tradições culinárias. Caso contrário, a galinha de cabidela– também na mira da fiscalização sanitária – somente será notícia nos livros de Eça de Queiros e de Jorge Amado.

O Brasil, que a cada dia vem ganhando projeção no cenário internacional, precisa zelar pelo seu patrimônio cultural e gastronômico.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Carlos Gomes, chaminés e memória

Valdecirio Teles Veras
A Região do ABC perde, aos poucos, seu referencial como um pólo industrial. As fábricas estão sendo substituídas por shoppings e edifícios residenciais. Numa reunião recente de antigos metalúrgicos no espaço denominado Celso Daniel, em São Bernardo do Campo, ouvi um deles lançar um desafio, indagando aos participantes do evento, quem sabia o nome da indústria que existia ali perto onde hoje funciona uma rede de supermercados. Poucos souberam. E esta foi uma alteração urbana bem recente. Ou outra, ainda mais recente, completou ele, onde estava instalada a Fiação Tognato? Novamente, poucos souberam responder. Os pontos que lembram o ABC industrial estão desaparecendo com os antigos moradores.
Em outros países há o costume de colocar nas antigas edificações anotações como aqui nasceu ou morou cicrano, beltrano. Poderíamos, em hipóteses de novos empreendimentos modificadores da paisagem urbana, afixar placas com referência aos antigos prédios.
Hoje, lanço aqui um desafio, um exercício de memória: onde estão as chaminés do ABC? Há poucas, mas ainda é possível ver algumas delas, bonitas, altas e imponentes, como aquela que o Conde Matarazzo mandou construir. O Vereador Joel Fontes, em São Caetano do Sul, apresentou, em 2010, um projeto de lei dispondo sobre o tombamento da chaminé das antigas Indústrias Matarazzo. Não tenho conhecimento do rumo que tomou esse projeto.
A região é nova. Para se ter uma ideia, um dos pontos referenciais da cultura regional, o Cine Carlos Gomes, conta apenas com pouco mais de um século, sendo que, ainda assim, é um dos mais antigos do Brasil. Alvo do descaso de sucessivas gestões, sofreu recentemente uma intervenção desastrosa e, agora, sem telhado e sem a marquise que sustentava as paredes, se não forem tomadas as medidas solicitadas pelos integrantes do Movimento SOS Carlos Gomes, não resistirá às próximas chuvas. A lamentar.
O certo é que estes marcos da história da região precisam ser preservados, inclusive alguns prédios onde funcionaram indústrias, quem sabe, transformando-os em monumentos culturais. A colocação de placas com dizeres como AQUI TRABALHOU GENTE, a exemplo das que vi na cidade do Funchal, poderiam ser um exemplo "didático" inicial de chamar atenção para a prática de se lembrar da história e dos cidadãos que fizeram a história local, aplicando-a nos prédios e monumentos que tenham "histórias" para contar.
O ABC bem que comportaria uma biblioteca temática voltada à região e à sua produção cultural e intelectual. O mesmo se diga sobre o movimento operário, mas isso será motivo para outras abordagens. Se outros não pensarem antes.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Gonzagão na Festa Junina

Neusa Borges

O povo brasileiro tem tanto apreço pelas festas juninas, que elas já estão também se tornando “julhinas”, ou seja, em pleno mês de julho, ainda há muitas festanças em clubes, chácaras, salões paroquiais...



Tempos atrás, escolas da rede municipal de ensino da Região deixaram de realizar as festas, sob a alegação de que, sendo o estado laico e as manifestações estarem ligadas aos santos da igreja católica, tais práticas contrariavam dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. No entanto, não foram poucas as críticas que surgiram nas redes sociais, pelo fim de algo de tão forte apelo popular.

Nos dias atuais, a educação precisa atentar para que o aprendizado das disciplinas como matemática, português, história, geografia, entre outras, não prescinda do respeito ao multiculturalismo que há numa sala de aula.  O que significa que não dá mais para admitir que algumas práticas do passado continuem vigorando, pois, muitas delas, até mesmo violavam direitos humanos. No entanto, no caso da proibição das festas juninas na rede publica de ensino, por exemplo, corre-se o risco de vermos as futuras gerações perderem o contato com uma das mais ricas manifestações da   cultura popular tradicional. Sem contar que a questão poderia ter sido debatida com a sociedade civil.

O fato é que, quando os educadores são ousados e comprometidos em fazer a diferença, uma festa que muitos até poderiam chamar de junina, por conter elementos característicos do gênero, pode virar uma verdadeira aula sobre a vida e obra de um artista que apresentou o Nordeste ao Brasil. Foi o que aconteceu num sábado do dia vinte e três de junho, na EMEB Irmã Odete, na Vila São Pedro - localizada em região periférica de São Bernardo do Campo -, ocasião na qual as educadoras e equipe gestora daquela unidade de ensino organizaram uma festa junina que foi, sobretudo, uma linda homenagem a Luiz Gonzaga - o Rei do Baião -, que neste ano completaria cem anos de vida.

Os alunos da EMEB (de 5 a 6 anos), que pesquisaram sobre Gonzagão, viram seus trabalhos expostos por todos os espaços da escola; no palco improvisado na quadra esportiva, revezaram-se grupos de forró da comunidade (na Vila/Cidade São Pedro, com 23 mil habitantes, segundo o último Censo do IBGE, tem muitos forrozeiros), que cantaram músicas do repertório do homenageado, tendo ao fundo o belo painel retratando Luiz Gonzaga com sua inseparável sanfona, confeccionado pelo cineasta Milton Santos - ô, cabra “bão”!


Num cantinho do salão, um telão exibia vídeos sobre a vida do artista; crianças e adultos, todos davam uma paradinha para ver as imagens. Enfim, foi uma festa bastante especial; as centenas de pessoas (de todos os credos) que por lá passaram, se divertiram bastante e, ainda, tiveram a possibilidade de um mergulho no rico universo de um dos maiores gênios da nossa música.
Quando os profissionais exercem o seu ofício com brilho nos olhos, a exemplo da educadora Roseli Ortigoso, que, mesmo às vésperas da sua aposentadoria, ainda se empenha e se envolve de corpo e alma nos projetos que abraça, fica a certeza de que a escola pode, sim, ser espaço para se vivenciar grandes experiências coletivas.

A equipe da EMEB Irmã Odete nos deu um grande exemplo de como é possível fazer com que as irmãs educação e cultura caminhem de mãos dadas.
O cordel abaixo, de autoria de Sueli Porfírio, que, no dia do evento, ficou afixado num painel na entrada da escola, revela muito sobre o espírito da festa.




Festa Junina

A falta dessa festança
Há muito tempo lamentamos
Discutimos na pedagógica
E todos juntos planejamos
Um encontro diferente
Com apoio da comunidade
Queremos reunir toda a gente
Cultura com muita dignidade

Estudamos direitinho
Para erros não cometermos
Teve pesquisa e tudo
Então à história recorremos
Festa Junina é pura cultura
Que se espalhou pelo mundo
Por isso se não acontece
Fica um vazio profundo

Vamos contar nesse cordel
Que dá gosto de relatar
Sobre a Festa Junina
Que é bastante popular
Na Europa ela surgiu
De lá veio pro Brasil
Para aqui se consagrar

Essa festança é marcada
Pela grande animação
Tem roupa bonita e milho assado
Tem foguete e tem balão
Quadrilha para todo lado
É xote, baião e xaxado
Relembrando Gonzagão

No Nordeste Brasileiro
Virou mesmo tradição
Se espalhou para todo lado
Do Oiapoque ao Chuí
Não ficaremos de fora
Vamos comemorar agora e aqui

A festa é dia 23
Vai ter muita coisa gostosa
Como não poderemos vender
Comida vai ficar lá fora
Tudo com muita segurança
A igreja e comerciantes da Vila
Vão caprichar pra comilança
Do lado de dentro só cultura
Brincadeira e exposição
Baile, shows, folia pura!

Aqui dentro também faremos
Homenagem ao rei do baião
Vamos brincar, dançar e comer
Uhhuuuu! Eita trem bão!