quinta-feira, 11 de abril de 2013

Apropriação social, resistência e preservação do patrimônio


Silvia Helena Passarelli*
O Cine-Teatro Carlos Gomes é um edifício exemplar na cidade de Santo André, SP. Por muitas décadas durante o século XX, foi importante centro de encontro social e difusão cultural para toda a região ABC. Estes atributos conferiram ao edifício a categoria de bem cultural do município em 1992, quando foi tombado pelo Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico-Urbanístico e Paisagístico de Santo André (COMDEPHAAPASA).
Enquanto bem cultural tombado, o edifício do Cine-Teatro Carlos Gomes possui um valor simbólico, marco de identidade da comunidade andreense e de toda a Região ABC. Sua preservação foi reclamada pela população regional quando de seu fechamento, em 1986, momento em que o cinema cerrou suas portas e foi ocupado por uma loja de tecidos e um estacionamento.



Muitas fases de um edifício.
O Cine Teatro Carlos Gomes de 1925 até os nossos dias


Foi a luta pela defesa do Cine-Teatro que chamou a atenção das autoridades que decidiu pela desapropriação do edifício (em 1990) e, posteriormente pelo tombamento do imóvel pelo COMDEPHAAPASA (em 1992), bem como diversas ações que garantiram o funcionamento do edifício como equipamento cultural e referência para a memória local, apesar de diversas intervenções anteriores que adulteraram a fachada frontal do edifício. Este momento da história da cidade e do Cine-Teatro Carlos Gomes foi marcado por um esforço coletivo de toda a sociedade pela preservação de sua memória. O Diário do Grande ABC, em editorial de 17 de setembro de 1987 anunciava: “Somente a união de todos poderá manter vivo na memória o esforço feito para preservá-la".
Reaberto como espaço cultural, com recursos públicos em parceria com a iniciativa privada, em festa em 11 de dezembro de 1997, após um longo processo que contou com a desapropriação do imóvel e posteriormente a consagração do bem como patrimônio cultural por meio do tombamento, ainda clamava por recursos para recuperação da infraestrutura (especialmente da eletricidade) e da estrutura do telhado. A falta de investimentos na manutenção do edifício fez com que fosse condenado pela Defesa Civil e interditado em 2009 para qualquer atividade. Segundo documento avaliação técnica da Prefeitura de Santo André, “o local era insalubre, não apenas pelo cheiro forte de mofo e presença de insetos, mas principalmente pela falta de ventilação, problemas visíveis na parte elétrica e a ausência de saídas de emergência em caso de acidente” (Projeto de revitalização do Teatro Carlos Gomes, mar, 2011, Processo Administrativo nº 27.259/2011, p. 6; Inquérito Civil nº 3409/12 p. 70).
Foi com esta proposição que a Prefeitura de Santo André submeteu ao COMDEPHAAPASA uma proposta de “revitalização” do edifício apresentando um estudo preliminar para a implantação de uma “Sala de Cine-Concerto” em junho de 2011. Para tanto, previa a reforma do edifício com ampliação de área a partir da desapropriação de terreno na Rua Dona Gertrudes de Lima, vizinha ao imóvel e pertencente ao Banco do Brasil. A proposta, no entanto, tinha caráter preliminar, se enquadrava como uma consulta ao Conselho para facilitar a captação de recursos financeiros.
Ignorando os ritos para a intervenção em um bem tombado, a Prefeitura iniciou a intervenção no edifício: os conselheiros foram silenciados por meio de uma longa ação que envolvia a falta de clareza na informação e retórica nos discursos, desqualificando qualquer abordagem técnica que se fazia dentro do Conselho ou fora dele, em artigos que veicularam na imprensa. Foi a retirada da laje frontal, marca do crescimento das salas de cinema de rua implantada em meados do século XX, que indignou a população e possibilitou a articulação de produtores culturais, agentes de preservação da memória e imprensa em torno da possibilidade de perda do velho Carlos Gomes. Depois de um período de silêncio, a retirada da laje frontal do edifício mobilizou a opinião pública na organização de manifestações na frente do Cine-Teatro, nas reuniões do Conselho de Defesa do Patrimônio, na imprensa e nas redes sociais da internet, garantindo a paralisação da obra por ordem do Ministério Público.


Manifestação em defesa do Cine Teatro Carlos Gomes
realizada em 28 de julho (fotos: Nario Barbosa)
 
As lições aprendidas neste processo chamam a atenção para o tratamento que se deve dar à preservação da memória de Santo André ou do ABC Paulista, região industrial nascida como subúrbio de São Paulo, região periférica que não recebeu a atenção de grandes obras artísticas e monumentais. Nesse contexto, o “Carlos Gomes” torna-se um símbolo da resistência cultural. Ao mesmo tempo, põem à luz a necessidade de fortalecer as práticas de educação patrimonial que envolva conselheiros representantes da sociedade civil e agentes públicos, aperfeiçoando a elaboração de pareceres técnicos e fortalecendo o debate da preservação junto a diferentes áreas técnicas da Prefeitura. Ao mesmo tempo, é fundamental a integração da ação preservacionista com as políticas de desenvolvimento local, de modo a evidenciar os conflitos e permitir a formulação da política de gestão do patrimônio que inclua a execução de inventário de reconhecimento.
Infelizmente, a prefeitura não traz alternativas claras para a intervenção no edifício. Inicialmente, em 18 de janeiro de 2013 afirma pretender retomar as obras do antigo edifício adotando o projeto equivocado da administração anterior, projeto que foi rechaçado pela população em audiência pública promovida na Câmara de Santo André em 27 de julho, quando a população declarou sua intenção de ver funcionando no local um espaço de múltiplo uso, com várias possibilidades, um teatro de variedades (http://www.readmetro.com/en/brazil/metro-abc/). Depois, sem negar publicamente o artigo impresso, solicita uma audiência pública em véspera de feriado para debater diretrizes para uso no edifício, porém, na realidade, pretende consolidar a formação de uma comissão de produtores culturais para discutir o tema. Propõe, ainda, estratégias de proteção das ruínas do edifício apresentando ideias como a troca do telhado e a construção de vigas de concreto para sustentação das paredes (por que concreto? Uma estrutura metálica não ficaria mais leve nas ruínas? Ninguém saberia responder). Esquece, porém, que as pinturas internas do edifício continuam desprotegidas.
Sobre o uso, a prefeitura propõe o isolamento do edifício do contexto urbano e se recusa a debater os usos deste espaço e suas relações com o corredor cultural da área central e os usos já presentes nos demais lugares de cultura e memória da área central que deveriam se complementar. Caminha, assim, no descompasso com as proposições mais atuais sobre a preservação do patrimônio cultural que põe foco nas relações do bem com o desenvolvimento socioeconômico da cidade e com as relações dos habitantes com o patrimônio e a cidade.
Sem dúvida é um avanço propor o debate público das possibilidades de uso de um patrimônio cultural, no entanto é fundamental garantir a sua inserção com a dinâmica urbana e com as transformações do ambiente e suas relações com os demais espaços culturais da área central, buscando a complementaridade dos possíveis usos culturais da área central. Ao mesmo tempo, é preciso esclarecer quem serão os interlocutores deste processo de discussão: serão os agentes públicos, conhecedores do potencial de uso dos espaços culturais da área central, aqueles que permanecerão na prefeitura para manter as atividades propostas ou os secretários de plantão, que não permanecem, que são substituídos a cada ciclo de governo.
As manifestações em defesa do Cine-Teatro Carlos Gomes põem à mostra a importância do valor afetividade em relação à preservação. Não é o edifício o elemento principal de preservação: a população atribui àquele lugar um valor simbólico que está além da arquitetura, está nas atividades culturais que marcaram a tela do cinema, o palco do teatro, os encontros no auditório. 
Reforça a importância de pensar nas questões culturais ao tratar as intervenções na cidade, sejam elas pontuais, como é o caso da intervenção deste edifício, desconectado com o debate sobre a cidade, sejam ao tratar da revitalização, requalificação ou reintegração de lugares, de bairros, ou, no dizer de Lilian Fessler Vaz, trata-se da “utilização da cultura como instrumento de revitalização urbana, faz parte de um processo bem mais vasto de utilização da cultura como instrumento de desenvolvimento urbano” (VAZ, L.F.. A culturalização do planejamento e da cidade: novos modelos? Cadernos PPG-AU FAUFBA. Territórios urbanos e políticas culturais, Salvador, Ano 2, 2004. p. 32)
Ou ainda, de se evitar a espetacularização, estratégia fundamental do marketing urbano (e diria eu, neste caso, de marketing político, pois utilizado às vésperas das eleições), e construir uma nova imagem para a cidade, mesmo com um discurso de preservação e de preocupação com a memória local. A proposta da Prefeitura de Santo André ao criar um local de excelência para a música orquestral roubava do Cine-Teatro Carlos Gomes tudo que ele possuía de popular: as lembranças da sessão amendoim, da pipoca na entrada do cinema, dos bailes carnavalescos dos anos 1950, dos shows de rock do final dos anos 1990.
As lições aprendidas neste processo chamam a atenção para o tratamento que se deve dar à preservação da memória de Santo André ou do ABC Paulista, região industrial nascida como subúrbio de São Paulo, região periférica que não recebeu a atenção de grandes obras artísticas e monumentais. Clamam, ainda, por uma política de preservação do patrimônio para esta mesma cidade industrial e operária, uma política de patrimônio cultural que envolva os moradores no debate sobre que valores devem ser preservados e como isso deve ocorrer.
*Dra em Arquitetura e Urbanismo, professora adjunta da Universidade Federal do ABC

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