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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

QUELÉ – A VOZ DA COR

                                                                                                                                                                     

                                                          

Era para ser apenas o trabalho de conclusão do curso de jornalismo dos quatro jovens na Universidade Metodista de São Paulo. Porém, quando propuseram a história de Clementina de Jesus como tema, não foram estimulados em seguir com a proposta, pela imensa dificuldade de se encontrar acervo documental sobre a vida da ex-empregada doméstica que, mesmo tendo sua carreira formal de cantora iniciado somente em 1964, pelas mãos do poeta e produtor cultural Hermínio Belo de Carvalho, conseguiu, com sua voz possante, encantar multidões no Brasil e no exterior.

O fato é que os estudantes Janaína Marquesini, Felipe Castro (reside em São Bernardo do Campo), Luana Costa e Raquel Munhoz, foram resistentes, mantiveram o foco e decidiram ir atrás dos personagens importantes que conviveram com Clementina, que também era chamada de Quelé.



A tarefa não foi nada fácil. Milton Nascimento os recebeu somente dois anos depois de insistentes pedidos do quarteto, após ser convencido de que não se tratava de um simples trabalho de faculdade. Também foi uma luta com Hermínio Belo de Carvalho, pois o mesmo disse não durante quatro meses, apesar dos insistentes telefonemas que recebia de duas a três vezes por semana.

Foram em busca de depoimentos gravados no MIS (Museu da Imagem e do Som)  e na Funarte.

Apesar das adversidades, o trabalho foi concluído e apresentado. A banca deu nota 10 e o resultado virou o livro - QUELÉ – A VOZ DA COR - cujo lançamento aconteceu no dia 10 deste mês, na Livraria da Vila, em Pinheiros, com a presença de muitas pessoas que aguardaram pacientemente na imensa fila que se formou para os autógrafos dos quatro jovens biógrafos que nos presentearam com a história de uma artista que ajudou a enriquecer a cultura brasileira.


“Trinta anos é tempo de sobra. No caso de Clementina de Jesus, morta em 1987, nenhum jornalista experiente ainda tinha se dedicado a ela. Coube a quatro jovens assumir a missão quando ainda eram universitários. Não sucumbiram às dificuldades que cercam a história de uma pessoa tão representativa da cultura oral.” Luiz Fernando Vianna

                                                                                                                                 Neusa Borges

terça-feira, 5 de maio de 2015

Dom Quixote ou A Arte de Namorar a Cidade*

Carlos Lotto
artista educador e produtor cultural
abril 2015

A cidade pela qual me enamoro é aquela que transcende a metrópole vazia de ética. É aquela para a qual quero ser visível, audível, tangível, por amá-la e ser por ela amado. Se enamorar da agitação do mundo para aquietar o alvoroço interior. Desapegar-se de si para encontrar um espaço comum: meu, teu, do outro, de todos. Amar a cidade é amar um ideal de totalidade, como um legítimo cavaleiro Quixote, como um poeta grego, com valores de superação, atemporais, como obra de arte, inspirado pelo sentido de pertencimento. A cidade sou eu!

Amo a cidade, amo a nação, amo a humanidade. Do aventureiro, eternamente sobrevivente e forasteiro, resgato a habilidade de fundir-me: a todas as gentes “não gentes”, aos vira-latas, aos incrédulos, decadentes, ruas, praças, becos, guetos.


Foto do painel de 3m executado pelos integrantes da oficina Letras do Mundo.

Lançar o amor que acorda a memória do amor aos ensimesmados e tristes, e assim buscar a Dulcinéia, o olho d’água, a negra do doce, com a coragem que liberta toda a humanidade esquecida e descuidada.

Acordar a cidade amorosa: a que insere o homem além da sua própria história; o espaço que protege a reflexão e o debate, e me faz novo para inventar novos hábitos comprometidos com o mundo humano, longe da barbárie.

Sem a cidade sou ninguém; sem espaço de participação sou ninguém; sem perspectivas sou ninguém. Sem a cidade me desmantelo, enfraqueço, desisto.

Quero tomar a cidade com a música sem fronteiras que existe dentro da gente e torná-la reflexo simultâneo dessa música. Arrebatar Sanchos e desprender-se do tempo, além da vida e além da morte, é a ação do poeta Quixote. Aquele que trará a qualquer espaço a “eternicidade”: o lugar do impossível feito possível, agora.

* Texto escrito para a exposição de abril/2015 do Projeto Quixotes, da Funsai- Ipiranga, coordenado pela atriz de Santo André, Andreia de Almeida, onde trabalhamos os heróis da cidade, através da arte. Inspirado nos adolescentes e nos artigos de Hanna Arendt sobre a crise da educação, a banalidade do mal e seu livro Homens em Tempos Sombrios, considero uma homenagem ao aniversario de Santo André.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Literatura e periferia: Avisa que alastrou

Foto: Fora do Eixo

A antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, referência dos estudos sobre cultura da periferia, faz considerações sobre a expansão dos saraus e da literatura marginal periférica na cidade de São Paulo (06.01.14)

Eduardo Sales, José Francisco Neto, José Coutinho Júnior, Jorge Américo e Simone Freire


Érica Peçanha: "A relação entre território e identidade existe desde sempre".
Foto Fora do Eixo
 
A cultura da periferia fala mais alto. Na cidade de São Paulo, a literatura marginal periférica ecoa com crescente vigor sobretudo a partir do final dos anos de 1990. A multiplicação de saraus por toda a cidade reforça a cena (ou movimento), também influenciada pelo Hip-Hop.
Referência nos estudos da produção cultural das periferias, Érica Peçanha do Nascimento é antropóloga e autora de Vozes marginais na literatura (2009). Em seu doutorado pela USP, estudou estratégias de produção, circulação e consumo cultural na periferia paulistana a partir do trabalho desenvolvido pela Cooperação Cultural da Periferia (Cooperifa), que tem como principal atividade a realização de saraus literários. Território e identidade são palavraschave para Érica. “Uma vez que há coletividade, uma vez que há sociedade, sempre vai haver produção de identidade”.
 
Em entrevista ao Brasil de Fato, a antropóloga joga luz sobre a relação entre literatura marginal periférica, saraus e mercado editorial, por exemplo, além de falar sobre o próprio contexto de quem alimenta essa produção, o sujeito periférico. Um conhecimento que surge para atender a cada vez maior demanda de leitores, universidade e imprensa.
 
Brasil de FatoComo toda essa efervescência do movimento de saraus pela cidade de São Paulo, ajuda a reafirmar a identidade de quem vive na periferia?
 
Érica Peçanha – A relação entre território e identidade existe desde sempre. Uma vez que há coletividade, uma vez que há sociedade, sempre vai haver produção de identidade e isso independe de um movimento cultural ou artístico com determinados objetivos. Do ponto de vista externo, abordando o processo de formação das periferias daqui de São Paulo a partir dos anos de 1940 e 1950, sempre houve esse marcador de diferença entre o centro e a periferia.
Então o território da periferia, o espaço social da periferia também acho que virou adjetivo para uma série de coisas. Durante muitas décadas morar na periferia era sinônimo de ser pobre, restrição do acesso ao ensino; tem uma certa maneira de falar, já que as periferias de São Paulo abrigaram muitos migrantes nordestinos e muitas pessoas vindas do interior de Minas Gerais nas últimas cinco décadas.
 
Nos anos de 1970 e 1980, principalmente por conta das organizações políticas, por meio dos movimentos sociais reivindicatórios, sobretudo por conta da infraestrutura, houve uma movimentação forte nas periferias na luta por creche, transporte coletivo, escolas, melhores condições de moradia e, principalmente, pela atuação das associações de amigos de bairro.
Havia uma forte atuação de mulheres por questões que estavam mais ligadas ao ambiente doméstico, a postos de saúde, da creche para os filhos, enfim. Houve certo avanço nos últimos anos em relação a esses temas. Agora, nos últimos anos, os movimentos culturais vêm trazendo outros tipos de reivindicações. E o Hip-Hop tem essa coisa de dar voz a alguns direitos que o Estado em negando, ou denunciar os altos índices de violência na periferia, de repressão policial.
 
Surge uma afirmação positiva em ser da periferia. Ser da periferia não é só ser associado ao precário, ao ruim, ao violento. Assume-se uma identidade periférica no sentido de reverter esse estigma, dar outro significado a ele no sentido de dizer que ser da periferia é ter orgulho de ter sido criado neste território, ter orgulho de dar voz a outras pessoas, de expressar desejos e demandas de uma coletividade e, mais recentemente também, é ter orgulho de ter uma cultura específica.
O sujeito periférico precisa pertencer necessariamente ao território periférico?
Pensando no contexto de São Paulo, esse que eu acompanhei mais, e acho que tem uma efervescência de fato dessa coisa de movimentos de literatura marginal periférica, acho que devemos pensar do ponto de vista histórico: quando é que essas coisas voltam à tona? Tem a ver com a publicação das edições especiais da revista Caros Amigos, a partir de 2001; e tem a ver, um pouco antes, com a publicação de Capão Pecado, do Ferréz, em 2000.
 
Em 2001, Ferréz organizou a primeira edição da Revista 
Caros Amigos - Literatura Marginal: A Cultura da Periferia. Foto Sesc SP
As edições eram denominadas Literatura Marginal- A Cultura da Periferia. Eram 48 autores, se a gente for pensar nas três publicações. E se você fosse se perguntar: “Mas é marginal em relação a que? É periférico em relação a que?” Se observarmos os currículos dos escritores que publicaram você poderia pensar: é marginal em relação à lei porque, afinal, tinham ali publicações de alguns ex-presidiários e presidiários; é marginal e periférico em relação ao território porque muitos ali identificavam seus bairros de origem, se afirmavam como moradores de periferias e favelas. Era marginal do ponto de vista político porque havia um texto da Maria Conceição Paganele, que era da Associação de Mães de Meninos em Conflito com a Lei; era marginal do ponto de vista sociológico porque havia textos também de indígenas naquelas revistas; podia ser um marginal do ponto de vista sociológico se pensássemos na participação de mulheres; no sentido cultural, se considerarmos a participação de alguns punks e de alguns membros do movimento Hip-Hop.
 
Naquelas edições especiais da revista havia uma pluralidade de possibilidades do que seria esse marginal, do que seria esse periférico. Mas o predominante é que havia uma combinação de marginalidades em cada autor, e a maioria era da periferia, das favelas. As revistas foram publicadas até 2004 (2001, 2002, 2004). Eu creio que em função muito da amizade que se criou  a partir das revistas, da visibilidade que elas tiveram, muitos daqueles escritores criaram relações e começaram a desenvolver uma série de atividades nas periferias de São Paulo. É por isso que a questão geográfica ficou mais forte, mas acho que isso não diminui a possibilidade de se pensar em várias periferias, não apenas a geográfica.
 
Como analisar a questão da oralidade nessa literatura periférica, ela funciona como um campo de atalho pedagógico, político?
Se faz política não só pelos meios tradicionais de se fazer política, mas por meio da produção cultural. Se eu fosse pensar em criar a relação entre literatura marginal periférica e política eu começaria a pensar a partir daí. Por que eu estou dizendo isso? Primeiro, quando você fala em oralidade, isso evoca toda uma tradição não letrada. Isso a gente vai encontrar na literatura periférica? Também. Se pensarmos na importância do Rap, na tradição falada, de contar histórias e compartilhar sabedorias de pai pra fi lho e nos remetermos até aos Griôts africanos. E também pensar numa tradição não letrada por conta da dificuldade de acesso ao ensino nas periferias. Mas, para além disso, acho que os saraus trazem uma ideia de vocalidade, de que os textos ganham voz.
 
Por outro lado, a literatura da periferia tem muito de uma tradição letrada também. Boa parte dos escritores frequentou a escola, alguns freqüentaram a universidade. Eles conhecem os autores chamados “clássicos” e os “não clássicos”. Os saraus trazem essa coisa de dar voz aos textos, ou de criar textos não necessariamente que vão ser escritos.
Do ponto de vista político, é claro que tem alguns escritores que são mais ativistas e de saída se colocam como ativistas e vão apresentar os seus textos como mais engajados. E por que eu acho esses dois pontos relevantes? A literatura da periferia é produzida a partir de um lugar, por sujeitos que de alguma maneira se relacionam com a ideia de marginalidade ou periferia – econômica, social e política –, não só tendo a ver com território. Tem a ver na posição social do autor. É uma literatura que traz marcas específicas: com a escolha dos temas, a escolha dos personagens, da linguagem. Na própria forma há gêneros que são predominantes: a poesia, por exemplo. Há pouca prosa na literatura da periferia. Existe uma maneira de escrever que evoca esses modos de vida na periferia, a valorização disso. É se afirmar politicamente.
 
Se essa literatura vai expressar culturalmente certas populações marginalizadas, então está colocando novas questões para o campo literário. Traz temas novos, personagens novos, linguagens novas, isso já é uma maneira de marcar o seu lugar no campo literário e no campo cultural e valorizar essa “cultura da periferia” ou valorizar toda uma tradição não letrada, por exemplo. É politicamente muito importante. E mais do que isso, esses escritores têm uma ação cultural que é engajada, uma ação que mobiliza pessoas em torno de direitos culturais amplos e que, às vezes, desenvolvem ações.
 
Por exemplo, o sarau que estudei, a Cooperifa. Nesses mais de dez anos que ela atuou eu presenciei ações solidárias tanto em benefício dos freqüentadores do sarau. Eu me lembro do caso de uma poetisa, por exemplo, que ficou grávida e vivia em condições muito precárias e durante alguns saraus as pessoas se mobilizaram para organizar todo o enxoval do bebê. Eu sei que isso acontece também em outros saraus. Mas pessoalmente eu já presenciei o sarau ser utilizado para convocar as pessoas  para manifestações políticas, para plebiscitos, para reuniões de associações de bairro, para campanhas contra a violência.
 
Nos livros clássicos ou nos mais vendidos, os personagens negros não são protagonistas; nem as mulheres. Quando eles são retratados, são marginais, ou bandidos, ou empregados. A literatura hoje é escrita por quem e pra quem? Qual a importância de alguém da periferia protagonizar esse movimento de escrever sobre a realidade local?
 
Desde os anos de 1990, existe uma marca forte na produção literária brasileira que é a urbanidade. Desde Rubens Fonseca, isso tem sido muito presente na produção literária contemporânea. Não era novidade mais em falar de mazelas sociais, de favela, de periferias. Já haviam sido publicados os livros Subúrbio de Fernando Bonassi, alguns do Marçal Aquino; o Paulo Lins já tinha publicado Cidade de Deus, então a grande novidade que surge a partir das edições da Caros Amigos-Literatura Marginal é que aí estão os sujeitos desse universo, que passam a se retratar na literatura.
 
Não se trata de representação de certa realidade social, mas do modo como os sujeitos querem se representar e querem ver os seus representados. Acho que essa é grande mudança. Mas para o mercado, por exemplo, trata-se de um ponto de vista de um sujeito que quer se retratar no plano literário, o que se agregava imediatamente ao valor da autenticidade, como se fosse mais legítimo o Férrez falar sobre o Capão Redondo do que qualquer outro escritor.
 
Para o mercado, isso tudo estava sendo transformado, “são um grupo mais autêntico” ou que “tem mais legitimidade quando fala da periferia”. Eu não tenho dúvida de que se vendeu muito livro a partir disso. Esses escritores ocuparam um nicho de mercado importante. Seguindo uma tendência que já havia se formado nos anos 1990. Não é invenção  a roda. A diferença que se agrega é do ponto de vista de quem é de dentro. Contudo, embora tenha esse jogo do mercado, muitos escritores têm mesmo o desejo de se afirmar como marginal, de se afirmar como periférico, de se afirmar como negro pra atingir um público específico. Pra um menino que ta lá na periferia e que tem um igual que também escreve, que virou notícia na televisão porque escreve, porque faz cinema, é extremamente significativo. Eu participei de pouco mais de 200 atividades nesses oito anos que fiquei pesquisando, e tive a oportunidade de acompanhar também esses escritores em escolas, também em ONGs; é impressionante o efeito pedagógico junto aos meninos de favela e periferias.
 
Isso tudo ganhou força então nos anos de 1990?
 
O termo literatura marginal vem sendo usado há alguns séculos. Não é nenhuma novidade. Agora o que muda são os significados atribuídos à ideia de literatura marginal. Por exemplo, a literatura marginal pode ser qualquer literatura feita à margem do corredor oficial de produção e divulgação; pode ser feita por um sujeito ligado a uma minoria sociológica, como a literatura produzida por mulheres, por presidiários, por indígenas.
 
Alguns consideravam Carandiru, do Drauzio Varella, literatura marginal. Do ponto de vista externo, a literatura marginal pode também se relacionar ao conteúdo de um texto ficcional que se remete a um contexto de marginalidade econômica, social, política ou em relação à lei. Pode ser muita coisa. O que que é importante pra contextualizar? Aqui no Brasil essa ideia está associada com a década de 1970 e final dos anos de 1990. Nos anos de 1970, por conta dos poetas da geração mimeógrafo, a ideia de literatura marginal no Brasil ganha força a partir da visibilidade que alguns poetas conseguiram, principalmente no Rio de Janeiro, em meio a ditadura militar.
 
No final dos de 1990, também por meio de jornalistas e pesquisadores passou-se a denominar essa determinada produção literária, tanto a que abarcava esse conteúdo de marginalidade, tanto aquela que tinha a perspectiva de  um sujeito que vivenciava alguma condição marginal. As duas coisas se misturavam, sobretudo por conta dessas obras, Capão Pecado e Cidade de Deus. O Paulo Lins é originário da Cidade de Deus e oFérrez, do Capão Redondo. E por conta do conteúdo também, porque tinha já oSubúrbio, do Fernando Bonassi, o Carandiru, e começou a pipocar o livro do Jocenir(Diário de um detento), do Roberto Mendes, e aí uma série de produções que se voltavam para o cotidiano das prisões.
 
Está acontecendo a primavera da Literatura Marginal?
 
A partir das edições especiais da Caros Amigos, do início dos anos de 2000, é um terceiro momento que tem a novidade da autoidentificação. Não são mais os pesquisadores, não são mais os jornalistas classificando aquela produção, mas uma série de autores que se colocam em cena se auto classificando como escritores marginais e periféricos.
 
Como o Hip Hop, a Literatura e os Saraus se complementam, se relacionam?
 
No livro Capão Pecado a gente tinha presença de rappers escrevendo textos. E de letras de Rap presentes. Isso já demonstra afinidade, que é política e é estética também entre essas duas manifestações desse distintos movimentos culturais.
 
Sobre os saraus, mais uma vez esses elementos se misturam porque vemos váriosrappers declamando suas letras de Rap. Existe uma série de poetas que não estão declamando rap, mas se você não conhece, poderia jurar que é uma letra de rap, por conta do corpo ser tão próximo e da performance ser tão próxima do rapper cantando ou declamando. Para além disso, há muitos rappers que passaram a escrever outros gêneros literários por conta dessa aproximação com os saraus, por conta dessa aproximação da literatura marginal e periférica.
 
Trata-se de movimentos que compartilham um repertório social em comum. Social porque são dois movimentos [Hip Hop e saraus] gerados na periferia, de sujeitos que atuam nas periferias. Para além disso, ambos se expandiram criando um mercado alternativo, criaram suas próprias estratégias de produção e circulação. Então acho que também aí os escritores são tributários de tudo que o Hip Hop criou, dessa forma de circulação e criação.
Qual o papel dos saraus junto às comunidades?
 
A fundo, eu estudei o Sarau da Cooperifa, que estabeleceu uma forma de fazer saraus na periferia, de relação com a imprensa, entendendo o jogo deles. Ninguém é inocente lá. Tem maior visibilidade dentro e fora do país.
 
Em relação aos outros saraus, há um desejo de aumentar a sociabilidade entre as pessoas do bairro; que se encontrem, compartilhem suas ideias, suas produções artísticas. Motivar também a comunidade à organização política, para falar sobre os problemas do bairro. Criar vínculo com a comunidade também tem esse sentido. A impressão que eu tenho é que há desejos desses tipos de vínculos comunitários.
 
A distribuição ainda é um gargalo para essa produção literária?
Muito da produção não chega às livrarias. Muitos acadêmicos que estudam essa cena têm, até mesmo, difi culdade de ter acesso a certos autores, poetas. Mas hoje em dia temos a Suburbano Convicto [editora], blogs, e pode-se comprar diretamente com os escritores. Esse modelo acabou sendo uma marca do movimento.
Mas não se poderia atingir mais pessoas?
Aí é cada pessoa que escolhe. Eu, por exemplo, publiquei meu livro numa editora pequena, é uma escolha minha. Para alguns escritores, isso pode ser intencional, de circular ou na periferia ou para um certo tipo de público. E não tenho dúvidas que os escritores são os maiores vendedores dos seus livros. Se alguém me pergunta sobre o que eu aprendi com os escritores da periferia uma delas foi vender livro.
Como é a aceitação destas obras na periferia por pessoas que não frequentam esses espaços?
Tem várias lacunas nos meus trabalhos, uma delas é essa com o público leitor. O que eu noto das palestras, e estou falando de uma perspectiva de quem nunca estudou o tema do público leitor a fundo, mas com base no que observei nas palestras, esses têm alguns tipos de público.
Quando são eventos de reflexão, vão os frequentadores do sarau e a meia dúzia de pesquisadores que estão fazendo TCC [Trabalho de Conclusão de Curso], mestrado ou doutorado. Quando são palestras específicas, como em escolas, universidades, CEUS, são alunos, pais de alunos, professores, e essas pessoas não frequentam o sarau.
Após a publicação da Caros Amigos, como você observa a produção dessa literatura? Ela se massificou? Houve mudanças estéticas na produção nesta última década?
Existem coisas que me espantam muito. A primeira é a variedade de termos que surgiram para classificar essa produção. Quando comecei a estudar, o termo era “literatura marginal”, e eu já estava lá me matando para entender o que era isso, pois englobava Ferréz e Dráuzio Varela. Depois, ao longo do mestrado, era “literatura marginal” e “literatura periférica”. Tanto que para nomear os autores que eu estudei, uso “literatura marginal da periferia” ou “literatura marginal periférica”.
Nos últimos anos, surgiram mais termos como “literatura hip-hop”, “literatura suburbana”, “literarua” e mais recentemente “literatura divergente”, que mesmo que as pessoas classifiquem como sinônimos, não são a mesma coisa, pois diversos autores podem ser associados a cada uma delas, diferentes obras e atuações culturais.
A segunda coisa que me espanta é o interesse acadêmico por essa produção. Quando comecei a estudar, não tinha nenhum trabalho acadêmico publicado, só que na última vez que contei eram 27, sendo que 14 deles na área de Letras, enfrentando os textos. Fora as dezenas de TCCs sobre o tema: dou de 10 a 15 entrevistas por ano para alunos que fazem TCC. É um número muito grande.
Para além dos trabalhos acadêmicos, me espanta também, positivamente, que dezenas de obras da periferia tenham sido incorporadas a cursos de graduação e pós-graduação. Eu mesma fi z um curso de literatura brasileira contemporânea que tinha um módulo para estudar literatura marginal. Tudo bem que eram só as obras do Ferréz, mas o módulo estava lá. A terceira coisa que me espanta é o número de obras que foram lançadas. Quando eu comecei a pesquisar, cataloguei 15 livros, de prosa e de poesia. Quando estava terminando o doutorado em 2011, até dezembro de 2010, eram 72 obras.
Do ponto de vista estético, os textos da época da Caros Amigos predominantes eram poemas, calcados em uma temática que valorizava os espaços e sujeitos marginais, baseados no contexto da periferia, falavam muito de pobreza, violência, problemas sociais, situações relacionadas ao trabalho, à polícia, à falta de direitos, protestavam contra o Estado. Eram textos que destoavam da norma culta, de regência verbal e uso do plural, calcados em gírias da periferia, neologismos, como “truta”, “loko”. Esses primeiros textos eram acompanhados de um cuidado visual, alguns com grafites, outros com desenhos que dialogavam com o texto de alguma forma.
No meu doutorado, como usei o termo “geração” para diferenciar os poetas marginais da década de 1970 dos contemporâneos, eu já arrisco dizer que podemos pensar em duas gerações desse movimento de literatura marginal periférica: a geração dos autores que está ligada aos autores que publicaram na Caros Amigos e naquele contexto de efervescência, e uma geração formada pelos saraus. Essa pode ser uma chave para pensarmos as diferenças ou continuidades estéticas da produção, considerando que são duas gerações muito distintas, dentro do mesmo movimento.
 * entrevista publicada originalmente no Brasil de Fatouma visão popular do Brasil e do mundo
 (http://www.brasildefato.com.br/node/26996#.UssjrnDPpNg.email

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Um resgate necessário


Julio Mendonça

          O texto que publicamos a seguir foi escrito por Berenice Baeder para apresentar o projeto de construção e publicação de um livro sobre o grupo Teatro-Circo Alegria dos Pobres, criado e coordenado pela professora e atriz Beatriz Romano Tragtenberg (a Bia) em 1973 e atuante até meados dos anos 80.
          O Teatro-Circo Alegria dos Pobres foi criado por Bia e um grupo de alunos na E.E.”Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto”, no Butantã, São Paulo. Numa época marcada pelo obscurantismo da ditadura militar, o qual se refletia no ambiente escolar, o grupo, apoiado nas concepções pedagógicas de Célestin Freinet (1896-1966), procurava contribuir para uma escola mais democrática e criativa.

         Mas, deixo o restante da introdução à história desse importante grupo cultural para o ótimo texto da Berenice. Acrescento, apenas, que, tendo eu também participado dele, recentemente pude retomar contato e rever a maioria dos ex-companheiros e companheiras (alguns, eu não via há mais de 30 anos). Ao final, peço licença para publicar um poema que escrevi sobre a experiência do Teatro-Circo.

____________________

Um pouco do texto já escrito do livro[1]
Berenice Baeder

In media res

[...] Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra [...]
Drummond

Dia de aula. Faltam alguns segundos para o sinal do intervalo. Há silêncio e ausência nos corredores da escola estadual Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto. Tudo é ordem e normalidade, até que o som estridente e monótono da campainha avisa, inadvertida, algo insuspeitado.
Quando soou o ardido som da sirena da escola, os alunos que vinham do último andar foram surpreendidos por um círculo de atores que já encenavam, com roupas coloridas, tridentes e tudo o mais, um dos três textos de cordel que seriam encenados nesse dia na escola. O grupo bloqueava a passagem dos alunos que, como estouro de boiada, só queriam uma coisa: chegar ao pátio da escola. Era impossível não parar para ver o espetáculo. Mais abaixo, quem saísse das salas daquele andar dava de cara com outro grupo posicionado estrategicamente, a falar, gesticular, rir e a provocar todo mundo. Ali a peça também começara antes mesmo da saída dos alunos para o intervalo. Ainda um terceiro grupo se posicionou no meio do pátio; assim, quem porventura tivesse conseguido furar o cerco e passado pelos dois outros grupos e descido para o pátio fatalmente assistiria ao cordel deste último grupo. Era um tal de trocar de roupa, colocar adereços e montar novas personagens, tudo diante de um público absolutamente impactado, incrédulo de que aquilo realmente pudesse estar acontecendo na escola. Assustados, no princípio, mas depois muito curiosos, eufóricos, os alunos corriam, disputavam um lugar em cada peça, correndo pelas escadas, pelos corredores, para não perder nenhuma delas. Foi uma correria danada, uma alegria, uma liberdade que havia muito não se experimentava nem na escola, nem fora dela.
Três andares na escola, três peças, três tropeços simultâneos – no caminho havia três pedras –, a parada para pensar, refletir, se divertir, sorrir!
Aí começava o trabalho do grupo independente de teatro, ou teatro de periferia, chamado “Teatro-Circo Alegria dos Pobres”.
Era o sombrio 1973, um dos cinco tenebrosos anos da ditadura militar sob o governo Médici (1969-1974). Apesar disso, aproveitando-se de um “cochilo da violenta intransigência”, alguns professores daquela escola transformariam por completo o destino de um grupo de jovens, criando na história daqueles tempos uma porta, uma brecha, uma real resistência pedagógica que definitivamente abririam a escola à vida.
Grande parte dos brasileiros queria, exigia mudanças. A educação adquiriu uma importância muito grande, aliás, desde a Primeira Guerra Mundial. Célestin Freinet, que foi combatente nessa mesma guerra e feriu-se gravemente no pulmão a ponto de não poder voltar para o front, elaborou uma nova pedagogia, mais solidária e fraterna, mais generosa e respeitosa para com as crianças do que aquela “escolástica”, que era o nome do autoritarismo militarizado imposto pela geração de velhos mestres orgulhosos e sádicos, empurrando aos alunos uma erudição de “nomes, datas e guerras”, dando vazão apenas à memorização na educação. Ele dizia: “há uma fossa entre a escola e a vida”.
O pedagogo Célestin Freinet foi alicerce e impulso para os trabalhos desenvolvidos pelo grupo desde o seu começo.


Um cochilo da ditadura
A escola de maneira geral, e mais especificamente a EE Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto, onde nasceu o grupo, estava vivendo intensa pressão disciplinar. Um menino não podia pôr a cara fora da sala de aula que do fundo do corredor o diretor, professor de história, conservador e triunfante apoiador da ditadura, dava gritos de ameaças de espantar qualquer um.
Nas mudanças que a Secretaria da Educação fez nos anos 1970, os professores primários é que passaram a dirigir as escolas que também ofereciam os cursos secundários, hoje os três anos finais do Ensino Médio. Só que o nível desses puxa-sacos, como eram conhecidos, era de sofrível a ruim, a ponto de os dois últimos diretores que passaram pela escola (inclusive o celerado professor de história) serem expulsos por todos os professores, por roubarem a Associação de Pais e Mestres e assediarem as alunas (o professor de história teve um filho com uma aluna), molestando-as sexualmente.
Foi aí que, lendo as leis relativas ao cargo de diretor, descobriu-se que a Congregação de Professores, composta por professores concursados, tinha o direito de eleger um de seus pares para ser diretor.
A ditadura cochilou e não revogou esse item! A submissão dos professores e dos brasileiros em geral foi tão grande que não foi preciso nem tirar esse direito democrático dos professores do ensino público.
Os professores elegeram então a colega Adib Abujamra Ferreira, professora de Educação Física, culta e inteligente, que apesar de estar a dois anos de sua aposentadoria desejava ardentemente “fazer alguma coisa” pela escola, o que, aliás, sempre havia feito no período democrático, antes de 1964.

Do projeto do livro
Esse curto excerto do livro mostra como começou o grupo, foco do projeto. A proposta do volume é acompanhar o percurso de oito anos de existência desse grupo independente surgido numa escola estadual, o contexto político em que atuou e como e em que bases eram desenvolvidos seus trabalhos: a pedagogia que deu sustentação e inspiração ao grupo, como e quem fazia figurinos, cenários, ensaios. Como eram feitas e o porquê das escolhas dos textos, das músicas; como foi o processo de realização do espetáculo de criação coletiva e de que maneira eram encaminhadas as discussões acerca de tudo isso.
O relato das apresentações do grupo também fará parte do livro, porque o lugar onde eram feitas também dizia muito sobre as escolhas e visão de mundo das pessoas que dele faziam parte: as peças eram apresentadas em escolas (de periferia ou não), espaços de associações de bairro, unidades da antiga FEBEM (atual Fundação Casa) da capital e do interior, em vigílias de movimentos reivindicatórios de sindicatos, em mostras de teatro de cidades do interior e da capital, no duro chão de terra batida dos espaços das comunidades da capital e em grandes praças públicas da cidade de São Paulo, como a Praça da Sé e São Bento.
A importância de falar dessas apresentações está sobretudo no fato de que, depois dos espetáculos (quando era adequado, quando dava), o grupo promovia debate, de onde saíam novas ideias e importantes discussões acerca do momento político, questões de preconceito e tantos outros pontos, além de haver o reconhecimento de onde o grupo se apresentava, do seu espaço sociocultural e suas profundas contradições. Era um dos momentos de troca e de crescimento mútuo que o trabalho proporcionava.

Da parte material do livro
O texto do livro será uma espécie de narrador, que vai alinhavar, num tom jornalístico, portanto fluido e objetivo, as diferentes escrituras e linguagens que constituirão o corpo do livro: depoimentos pessoais, entrevistas, respostas aos questionários, e também passagens focadas especificamente em um assunto.
Esse texto-narrador obedecerá à ordem cronológica dos trabalhos realizados ao longo da história do grupo:
·        Início do grupo com o teatro-relâmpago, de vários autores (do primeiro para o segundo semestre de 1973)
·        Semana de Arte na Escola (segundo semestre de 1973)
·        A Incelenças, de Luiz Marinho (1973-1974)
·        A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna (1975-1978)
·        O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1974-1976)
·        Tocar o Impossível Chão, criação coletiva do grupo (1977-1978)
·        A Festa do Pastoril Conta Cordel e Mamulengo, domínio da cultura popular brasileira (1977-1979)
·        O Último Xaxado em Macaxeira, coletânea de vários cordéis (1979-1981)
O livro também contará com a reprodução de cordéis, literatura ainda pouco conhecida ou compreendida em muitas regiões do país, assim como textos criados e encenados pelo grupo.

Da linguagem visual
Rica e variada iconografia será agregada ao texto principal de maneira orgânica, isto é, de modo que não apenas ilustre o texto, mas que nele construa, por si, sentidos.
Além de fotos, borderôs, pinturas, filipetas e xilogravuras, o livro será acompanhado de um CD com as músicas dos espetáculos, mais um DVD com cenas divertidas, e/ou importantes do ponto de vista estético e entrevistas. Esse DVD será uma forma de mostrar, por exemplo, o que é mamulengo, e de onde vieram e como foram criados tantos ricos elementos do folclore nordestino incorporados pelo grupo. Terá também um curto filme sobre a última peça encenada pelo Teatro-Circo Alegria dos Pobres: O Último Xaxado em Macaxeira, além de material iconográfico que não tenha constado do corpo do livro, mas que, pela sua importância, deve ser mostrado.

Por quê?
Finalmente, as razões que justificam a feitura de um livro como esse são, além de fazer conhecer o trabalho – que teve como base a arte e a educação – e seu contexto, e também de registrá-los, mostrar que é possível mudar, criar, reinventar a escola, ou o espaço que for, sobretudo num regime político democrático, e solidariamente oferecer sugestões de um dentre os muitos modos de fazê-lo, pois “Apesar de tudo, conseguimos!”

___________________




1973                                                                                         Julio Mendonça
Aos amigos e amigas do Teatro-Circo Alegria dos Pobres


Faltava o chão, faltava a palavra, faltava
a falta.
Sob a sombra do impávido colosso
havia que amar e deixar de amar os
que não amavam
a arte civil de ser submisso às leis
incivis.

“Ninguém sente falta do que perdeu”

Na escola,
diziam que sabiam o que devíamos saber:
os hinos, os símbolos,
a virtude, o civismo,
o cinismo,
a sevícia,
afivelados às grandes metáforas,
adulando a ignorância útil de cada dia.

foi quando o teatro      a música
- isto é      as mentiras necessárias
em meio
                     a tanta verdade inútil –
redescobriram    
                                   a alegria dos pobres
que não sabem
                                          mas des
cobrem
ninguém
                       sente falta
                                                   do que não conhece
começávamos a querer
                                                       arrombar a metáfora
                                                                                                       tocar o impossível





[1] Sobre o pedagogo Célestin Freinet e o “cochilo da ditadura”, o texto produzido teve como base uma transcrição de depoimento em vídeo da professora Beatriz Tragtenberg feita pela autora deste texto.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Salve a Rainha Quelé!

Neusa Borges

     No dia vinte de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, numa das salas do Espaço Itaú de Cinema, em São Paulo, ao término da exibição do excelente documentário Clementina de Jesus - Rainha Quelé, os espectadores aplaudiram a história daquela que nasceu mulher, negra e pobre, virou empregada doméstica, e teve o seu talento reconhecido somente após os sessenta anos de idade, passando a cantar com Pixinguinha, Paulinho da Viola, João Bosco e com outros artistas renomados.

foto do blog: http://rainhaquele.blogspot.com.br/


     Durante quase uma hora de duração, sob a direção de Werinton Kermes, o filme traz depoimentos emocionados de João Bosco, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Paula Lima, Cristina Buarque, entre outros, sobre a importância de Clementina de Jesus para a cultura brasileira.
     Apelidada de Rainha Quelé, Clementina de Jesus fascinou plateias do Brasil e do exterior, com a força da sua voz que, segundo João Bosco, era de alguém que nasceu há dez mil anos atrás.
Além dos depoimentos de vários artistas, o documentário tem cenas da artista em casa, contando passagens da sua vida de ex-empregada doméstica e cantando trechos das músicas que aprendeu com sua mãe, que foi filha de escravos.
     Mesmo tendo recebido vários prêmios, participado de festivais no Brasil e exterior, Clementina de Jesus nunca alcançou sucesso em vendagem de discos, pois sempre atuou na contramão dos padrões estéticos vigentes.
     Decorridos vinte e cinco anos de sua morte, o filme é mais do que uma merecida homenagem a uma mulher de excepcional talento, mas, sobretudo, um presente ao povo negro brasileiro, que ainda vive num país que vem lutando para combater as desigualdades raciais.
     Lamentavelmente, um documentário tão importante, que deveria ter sido lançado por todo o Brasil, ficou em cartaz apenas e tão somente durante uma semana, em uma única sala de cinema.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Uma Certa Livraria

 
Aberta ao público desde o último dia 29 de agosto, no Gambalaia, Rua das Monções, 1018, Santo André, SP, a exposição "Uma Certa Livraria", de Mariano do Amaral, artista extraordinário, cujo trabalho acompanho e admiro há muitos anos. Abaixo, texto de apresentação da exposição, que merece ser visitada: 


A arte de Mariano e a permanência da utopia

                                                dalila teles veras


            A contundência destes desenhos nos diz que a utopia humana está mantida, ainda que dolorosamente lembrada. Não a utopia representada por ideias político-ideológicas, mas a  utopia como dimensão permanente de humanidade, que inclui o cultivo do sonho, essa capacidade humana de transcender o real através do imaginário, o sonho como revelação do real, que a arte de Mariano do Amaral tão bem realiza.
            Para além da arte, o homem irremediavelmente comprometido com sua consciência democrática é aqui identificado, o homem que pratica o humanismo em sala de aula e fora dela, o humanista que transporta para a arte sua visão de mundo, sem jamais resvalar no panfleto e sem descuidar da preocupação estética.
            De acordo com seu autor, estes trabalham significam uma "manifestação pictórica do tema", referindo-se à obscuridade em que o Brasil mergulhou por duas décadas, sob a égide da força e da tortura, violência de um regime de exceção que justamente tentava calar a voz das utopias ou o registro delas.
            Aqui evocados, a livraria, a palavra e o livro, armas perigosas a combater. A palavra despida diante do algoz que dela tem medo e dela quer se livrar pelos meios mais torpes. Livros suspeitos que certas livrarias, ainda mais suspeitas, escondiam. A pena nua diante do torturador de sonhos; a pena que anota, com tintas invisíveis, a liberdade aprisionada, tintas para um futuro revelado e revelador, para a utopia do nunca mais.



            Sublinhe-se que neste caso, a palavra "livraria" não é mera metáfora. Os bons leitores, frequentadores de livrarias, como Mariano, sabem que essas casas "suspeitas" são fiéis depositárias de ideias e, num tempo como aquele, sem perspectiva de futuro, representavam a resistência pelo  armazenamento das utopias que tentaram emurchecer. 
A pena de Mariano, inserida nesse agora futuro democrático, não se vale do alfabeto para revelar. A pena de Mariano (re)vela  e manifesta pictoricamente essas utopias, (re)afirma a arte como condição indispensável ao seu cultivo.
            A arte de Mariano consegue extrair beleza das memórias tenebrosas, porque a arte verdadeira é isso, mostra que nem sempre o belo é bom e vice versa.
Bom mesmo, de maneira inconteste, é fruir desta arte desse nordestino paulista  brasileiro universal, artista grande que se esconde atrás de uma imensa modéstia, qualidade pouco vista e cultuada na sociedade do espetáculo e da celebridade instantânea.
            Vida longa e caminhos vários certamente estão reservados a estas obras,  significativas e significantes, na arte e na vida que, neste caso, são inseparáveis.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Mostra de Dança


Neusa Borges
Quem prestigiou a I Mostra Experimental de Dança de São Bernardo, realizada nos dia 6 e 13 de maio, no Teatro Elis Regina, em São Bernardo, pode constatar que há uma enorme legião de dançarinos (as) oriundos das escolas de dança mais tradicionais da cidade, bem como das que se instalaram mais recentemente.

Uma iniciativa dos jovens aguerridos do Núcleo Experimental de Dança, a mostra, que teve entrada gratuita nos dois dias, contabilizou 240 bailarinos, representando 18 escolas de dança, bem como um número expressivo de público composto por pessoas de todas as faixas etárias.

Várias crianças subiram ao palco mostrando belas coreografias e não menos belos figurinos. Os jovens dançarinos também fizeram bonito, nos emocionando com o clássico Quebra-Nozes, nos empolgando com o vigor do street dance e, para o delírio do respeitável público, a “dança do Michael Jackson”, que, diga-se de passagem, pelo sucesso que causa em todos os cantos do mundo (a exemplo do que ocorre na Avenida Paulista, com pessoas se aglomerando para ver a performance de jovens dançando as coreografias do ídolo pop), não é difícil imaginar que ela, a “dança do Michael Jackson”, será imortalizada tal qual o Quebra-Nozes, Lago dos Cisnes ou a Valsa de Strauss.

Dentre os vários pontos positivos da mostra, um deles diz respeito ao seu caráter não competitivo, ou seja, não se buscou premiar o melhor em nenhum quesito, mas, sobretudo, possibilitou revelar a rica produção do gênero na cidade. Outro aspecto positivo foi juntar num mesmo palco pessoas que vivenciam as mais diferentes realidades, tal qual aquelas que surgiram das aulas de dança ministradas em escola de educação formal situada na periferia da cidade.

Encantou-me particularmente a generosidade da Nayara, pelo fato de dar aulas gratuitas de dança na Escola Estadual Walker da Costa Barbosa, localizada em região periférica de São Bernardo. Certamente, sabemos que a maioria da população mais carente ainda enfrenta muitas barreiras para ter acesso ao consumo de bens culturais, bem como às atividades de formação; portanto, iniciativas como a da Nayara são de extrema importância para a superação de abismos culturais que ainda persistem em nossa sociedade.

Pelos depoimentos dos proprietários das academias de dança, em vídeos que foram exibidos durante a mostra, fica a certeza da importância do evento, não somente pela divulgação das escolas do gênero, mas, principalmente, pela possibilidade de atingir públicos diversos, que não precisaram gastar dinheiro para apreciar uma diversidade de estilos durante dois finais de semana.

Graças ao empenho, à obstinação e persistência de jovens que acreditam e arregaçam as mangas para concretizarem os seus objetivos, apesar de tropeçarem nas inúmeras  pedras no meio do caminho, é que a I Mostra Experimental de Dança de São Bernardo foi coroada de êxitos.
Parabéns ao Zeca, Jô e Joelma!