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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Salve a Rainha Quelé!

Neusa Borges

     No dia vinte de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, numa das salas do Espaço Itaú de Cinema, em São Paulo, ao término da exibição do excelente documentário Clementina de Jesus - Rainha Quelé, os espectadores aplaudiram a história daquela que nasceu mulher, negra e pobre, virou empregada doméstica, e teve o seu talento reconhecido somente após os sessenta anos de idade, passando a cantar com Pixinguinha, Paulinho da Viola, João Bosco e com outros artistas renomados.

foto do blog: http://rainhaquele.blogspot.com.br/


     Durante quase uma hora de duração, sob a direção de Werinton Kermes, o filme traz depoimentos emocionados de João Bosco, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Paula Lima, Cristina Buarque, entre outros, sobre a importância de Clementina de Jesus para a cultura brasileira.
     Apelidada de Rainha Quelé, Clementina de Jesus fascinou plateias do Brasil e do exterior, com a força da sua voz que, segundo João Bosco, era de alguém que nasceu há dez mil anos atrás.
Além dos depoimentos de vários artistas, o documentário tem cenas da artista em casa, contando passagens da sua vida de ex-empregada doméstica e cantando trechos das músicas que aprendeu com sua mãe, que foi filha de escravos.
     Mesmo tendo recebido vários prêmios, participado de festivais no Brasil e exterior, Clementina de Jesus nunca alcançou sucesso em vendagem de discos, pois sempre atuou na contramão dos padrões estéticos vigentes.
     Decorridos vinte e cinco anos de sua morte, o filme é mais do que uma merecida homenagem a uma mulher de excepcional talento, mas, sobretudo, um presente ao povo negro brasileiro, que ainda vive num país que vem lutando para combater as desigualdades raciais.
     Lamentavelmente, um documentário tão importante, que deveria ter sido lançado por todo o Brasil, ficou em cartaz apenas e tão somente durante uma semana, em uma única sala de cinema.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

O MALDITO QUE CULTIVAVA ORQUÍDEAS

Neusa Borges


Ele foi compositor, cantor, instrumentista, arranjador e produtor musical. A sua língua afiada, bem como o fato de não ter se submetido ao controle das poderosas gravadoras, foram fatores decisivos para que recebesse o apelido de maldito.

[Foto: Vange Milliet]

E é sobre a vida e a obra do bendito “maldito” Itamar Assumpção, que trata o imperdível documentário Daquele Instante em Diante, que está em cartaz nas salas de cinema Unibanco.

[Foto: Divulgação]
Para os admiradores de Itamar, é uma grande oportunidade para rever cenas de vários shows que o artista realizou ao longo da sua carreira, encerrada com a sua morte, em junho do ano de 2003. Para quem não acompanhou a sua trajetória artística, assistir ao documentário sobre o artista negro (que sentiu na pele as consequências de viver num país racista) e de uma incontestável genialidade, é a possibilidade de entender o que foi a luta de alguém que, por não ter se rendido à indústria cultural, viveu na dureza e morreu sem ter visto a sua obra devidamente reconhecida.

Um dos momentos mais emocionantes do documentário, diz respeito aos relatos sobre a paixão que Itamar nutria pelas orquídeas, que ele cultivava no quintal da sua casa, no bairro da Penha, em São Paulo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

K INDICA*

Tarso de Melo é poeta, autor, entre outros, de
Exames de rotina (Editora da Casa, 2008).
Doutor e mestre em Filosofia do Direito pela USP,
é advogado e professor da FACAMP.


          Começo por um livro de 2009 (afinal, nem o K nem esta coluna se deixam levar pela velocidade obcecante dos lançamentos, ainda que as notas sejam velozes...), de autoria da argentina Beatriz Sarlo. Trata-se de La ciudad vista: mercancias y cultura urbana (Siglo Veintiuno, 2009), em que a ensaísta persegue pessoalmente as mutações da vida urbana em Buenos Aires, fotografando pessoas, lugares, coisas em que pudesse flagrar as versões da cidade real sob as cidades imaginadas. A autora, munida apenas de caderneta e câmera digital, circulou pelos bairros mais diferentes e dedicou-se a ver e ouvir a dinâmica de sua cidade, depois costurada com crítica cultural e literatura. O resultado é delicioso, tanto pelo que revela sobre a cidade (e o leitor perceberá que, sob o retrato da cidade argentina, várias outras estão potencialmente retratadas), como pelo que indica à literatura. Todas as cidades deveriam receber igual atenção.

          Aqui, olhando para 2010, chamam atenção dois livros de poetas no exercício da função de críticos. Ou teóricos. Nos melhores casos, livros assim servem para ler a literatura a partir do local privilegiado que é a reflexão feita por escritores sobre livros – seus e alheios. Nos piores, a experiência do escritor-leitor, que poderia alimentar de tensão a atividade crítica, é sufocada sob uma determinada opção teórica. Temos aqui, decerto, o melhor: poetas que leem-criticam com as ferramentas afiadas na criação e enfrentam também criticamente as lutas com que os poemas se deparam.

         O primeiro deles é Júlio Castañon Guimarães, que reuniu alguns de seus preciosos ensaios, publicados em diversos espaços nos últimos 15 anos, no volume Entre reescritas e esboços (Topbooks, 2010). Castañon, cuja poesia pode ser lida na reunião lançada na coleção Ás de Colete, Poemas (Cosacnaify/7Letras, 2006), e no recente Do que ainda (Contracapa, 2009), aborda algumas das grandes linhas que cruzam a produção poética contemporânea, como a relação da escrita com a visualidade e com a oralidade, estendendo a reflexão sobre tais questões desde Mallarmé a Sebastião Uchoa Leite e Leminski, num percurso que inclui Francis Ponge, Murilo Mendes, João Cabral e Augusto de Campos. Se cada um dos ensaios de Castañon já merecia destaque separadamente, a edição em conjunto é capaz de atribuir aos textos a feição de uma poética – da criação e da leitura de poesia – descoberta entre versos, sons, imagens, cartas, manuscritos, saltando sobre seus próprios elementos.

         O segundo, Marcos Siscar, que no ano passado lançou os poemas do riquíssimo volume Interior Via Satélite (Ateliê, 2010), reuniu também uma série de “ensaios sobre a ‘crise da poesia’ como topos da modernidade”, sob o título Poesia e crise (Ed. Unicamp, 2010). Siscar persegue, com rara habilidade, o “discurso da crise” desde os primeiros poetas que o revelaram (Baudelaire, em especial) até as suas mais recentes formulações, demonstrando como a relação entre poesia e realidade, se tem sido apreendida ora como “adesão”, ora como “abstenção”, é antes de tudo uma relação em crise – desconhecer tal característica é não perceber que a poesia possibilita ler a crise criticamente. Nas palavras de Siscar, “a poesia nomeia o desajuste sem fugir de suas contradições, ao contrário, fazendo dessas contradições ao mesmo tempo o elemento no qual se realiza e no qual naufraga qualquer nomeação”.

De quebra, registro ainda que Marcos Siscar traduziu, com a também poeta Paula Glenadel, um livro recente de Michel Deguy, Reabertura após obras (Ed. Unicamp, 2010). Espécie de “manifesto pela poesia”, pesado e profundo como é pesada e profunda a experiência do poeta Deguy, para ser lido como um longo ensaio-poema. Ou talvez não convenha ou importe classificá-lo, afinal, Deguy defende que “O poeta contemporâneo apresenta-se de bom grado como teórico da poesia. Ele gosta de girar dentro do (e junto com o) círculo que encadeia o pensamento-da-poética e a poética-do-pensamento”. Como poesia ou como ensaio, vale muito a pena ler.

Já em 2011, a boa nova para o leitor de poesia até aqui é o novo livro de Hélio Neri, Palavra insubordinada (Alpharrabio, 2011). A esta altura de um amontoado de “dicas de leitura” – tendo em mente os passeios pela cidade com Beatriz Sarlo, as leituras precisas de Júlio Castañon Guimarães, a noção de crise e seu papel na poesia desvendado por Marcos Siscar ou mesmo a “defesa” da poesia feita por Deguy –, tenho a impressão de que começo a descobrir porque o livro de Hélio Neri me chamou tanta atenção. Sem ou com exagero, não importa, seu livro revela aspectos dessas questões a partir de dentro, pois a relação entre poesia e realidade e a busca de “soluções” poéticas para os conflitos daí advindos são constantes da poesia de Neri. Não como simples “tema”, mas pela incapacidade de impedir que, em sua linguagem, fiquem escancaradas as contradições em meio às quais o poeta persistentemente escreve.

Escrevi, certa vez, que Hélio Neri trabalha com a mesma matéria-prima dos rappers, mas não escreve nada parecido com rap. Ainda creio nisso. Nos pequenos livros que lançou, sempre em edições pequenas e precisamente adequadas às guerrilhas a que sua poesia está condenada, Hélio Neri sempre faz a poesia se levantar de onde menos se espera. Não poderia haver título melhor para seu livro.


* Publicado originalmente no jornal literário K