Neusa Borges
Na manhã do dia 16 de março, durante o ato promovido pelo Movimento Cultura Viva Santo André, uma jovem mulher acompanhada de seu filhinho parou para apanhar o material que estávamos distribuindo, bem como para nos ouvir sobre o motivo daquela atividade que estava acontecendo naquela manhã na Coronel Oliveira Lima. Após explicarmos que se tratava de um movimento organizado, cujos participantes eram pessoas engajadas na luta pela valorização da cultura em Santo André e na Região, o menino, no alto dos seus cinco aninhos de idade, indaga o seguinte: “Mãe, o que é cultura?”.
É perfeitamente compreensível que uma criança não saiba o que é cultura. No entanto, se fizermos uma pesquisa com muita gente grande (incluindo os políticos), saberemos que poucas pessoas sabem que cultura é muito mais do que aquilo que elas imaginam que seja.
Alguns anos atrás, ao apresentar a sua assistente, um dirigente de uma instituição cultural falou que se tratava de alguém bastante capacitada para o cargo, pois sabia tocar piano. No ano de 2011, na Assembleia Legislativa de São Paulo, durante o ato da Frente Parlamentar em Defesa da Cultura, ouvimos muitos deputados discursarem enfatizando a importância do investimento em cultura, pois seria a forma de afastar os jovens das drogas e da violência. Posso afirmar que, entre as dezenas de parlamentares, apenas dois falaram com propriedade sobre o tema.
Nas cidades onde há plenárias de orçamento participativo, os munícipes pleiteiam investimentos em saúde, moradia, transporte e, muito raramente, alguém revindica atenção para a cultura; muitas vezes, são solicitadas áreas de lazer para as crianças e jovens.
No ano de 1989, por conta de um projeto de descentralização das ações culturais implementado pelo então Departamento de Ações Culturais da prefeitura de São Bernardo do Campo, nas reuniões promovidas nas comunidades ouvíamos comentários do tipo: ah, não tenho cultura, pois tenho pouco estudo; ou, fulano tem cultura, pois estudou muito, sabe falar palavras bonitas...
Respondi ao pequenino da Oliveira Lima, puxando pela memória trechos de um belo texto que o dramaturgo Augusto Boal escreveu no ano de 2002, entusiasmado que estava com a chegada de Lula à presidência da República.
Abaixo, segue o artigo que foi publicado pelo jornal A Folha de São Paulo.
AUGUSTO BOAL
A primeira proposta econômica de Lula, presidente eleito, foi a de matar a fome de milhões de brasileiros; em política internacional, estender a mão aos argentinos; para o comércio entre países, propôs o escambo!
Propostas bem diferentes das que eram aceitas como inevitáveis, dentro do pensamento único. Coerente com essa nova visão de Brasil, o programa de Lula para a cultura deve ser criador.
Mas o que é a cultura? Num sentido amplo, somos todos produtores culturais, porque o primeiro objeto do nosso cultivo é a própria vida. Cultivamos a vida biológica, afetiva e social: o trabalho e o lazer, a guerra e a paz. Todos produzimos cultura: gente de uma mesma região, etnia ou religião.
A vida, para que exista e persevere, exige. É das respostas que damos às exigências da vida que nasce a cultura. Cultura é o "fazer", "como fazer", "para que" e "para quem" se faz. Castores constroem sempre os mesmos diques, geneticamente programados; pássaros fabricam sempre o mesmo ninho, cantando a mesma canção. Nós, seres humanos, somos capazes de inventar canções e arquiteturas!
Inventamos a roda para viajarmos mais longe do que podem as pernas; a ponte, para cruzarmos o rio; construímos casa que nos abrigue e roupa que nos proteja do sol e do frio. A cultura constitui-se em todas as atividades que satisfazem necessidades, mesmo supérfluas. É o "como fazer" o que se faz. Esse é o primeiro capítulo de uma nova proposta para a cultura, em um governo que já nasce inovando: a "Cultura como Vocação". Somos todos produtores culturais, desde as estrelas de TV até os camponeses do Acre, Rondônia e Roraima.
Para cobrir a mesa é necessária a toalha. Qualquer costureira é capaz de cortar um pano: eis a toalha. Uma rendeira do Ceará, no entanto, faz toalhas e vai além: o produto que fabrica é arte. A rendeira responde às suas necessidades estéticas. Sua toalha cobre a mesa e agrada aos olhos. Seu valor é maior. Tão grande que pode ser impossível usá-la como toalha que protege a mesa: é necessário proteger a toalha.
A arte faz parte da cultura. A cultura é o ser humano, é o que há de humano no ser, é aquilo que o distingue dos outros animais. Os produtores culturais, porém, não produzem apenas para si mesmos. Ao produzir para outros, seu produto torna-se mercadoria. O artista cria além do necessário imediato, cria o gozo. E o gozo pode tornar-se necessário e pode tornar-se mercadoria. A arte, transformada em mercadoria, enfrenta o desafio das prateleiras e os rituais do leilão Perigo mortal: quando um artista produz arte, responde à sua maneira de sentir, ver e pensar. Quando sua arte se transforma em mercadoria, introduz-se a demanda externa prioritária.
O artista responde não mais a si mesmo, mas à demanda do mercado, induzida pela propaganda. A vocação cultural torna-se profissão.
Em uma exposição de arte indígena, um dos expositores confessou: "Em nossa aldeia, fazemos estatuetas sem as cores vivas com que pintamos para o mercado paulista -os compradores preferem as coloridas!" Aquele índio era artista, tornou-se artesão: repete modelos. Fazia arte indígena; passou a fazer arte-para-o-branco. As leis do mercado são as leis dos mercadores, assim como a lei da selva é a lei do leão.
Um programa com as idéias e os ideais de Lula -que, alegres, compartimos!- deve proteger os artistas profissionais, nesse segundo capítulo, tão importante: a "Cultura como Profissão".
No processo globalizador, cultura e arte passam a servir ao mesmo propósito do comércio em geral: o lucro, a propaganda e a despersonalização dos artistas. Quando assistimos a um filme de Hollywood, não é só o enredo que temos que engolir goela abaixo: são os chapéus texanos, o uísque de Kentucky, os carros que explodem em modernas pontes de aço e são jogados ao mar sulcado de jet-skis; são as sirenes policiais e as metralhadoras que serão usadas pelos nossos traficantes, "up-to-date" com inovações bélicas. Um filme vende mais mercadorias do que os anúncios comerciais explícitos.
É importante para os globalizantes destruir as culturas nacionais, locais, pois elas são a identidade de quem as produz e, para dominar, é necessário destruir a identidade do dominado.
Para lutar pela nossa vida cultural, temos que estudar nosso passado, neste fantástico presente que estamos vivendo, para podermos inventar nosso futuro: eis a terceira vertente de um inovador plano cultural: a "Cultura como Memória do Passado e como Invenção do Futuro Cultura não é luxo: sou eu, é você, é o Lula! É o povo na praça. "A praça que é do povo, como o céu é do condor!" - já dizia o poeta Castro Alves.
Peço licença ao dramaturgo, para acrescentar que cultura é aquele garotinho curioso, a Glaucia e o Possidônio Sampaio dançando livres, leves e soltos naquela manhã histórica em Santo André.
Para cobrir a mesa é necessária a toalha. Qualquer costureira é capaz de cortar um pano: eis a toalha. Uma rendeira do Ceará, no entanto, faz toalhas e vai além: o produto que fabrica é arte. A rendeira responde às suas necessidades estéticas. Sua toalha cobre a mesa e agrada aos olhos. Seu valor é maior. Tão grande que pode ser impossível usá-la como toalha que protege a mesa: é necessário proteger a toalha.
A arte faz parte da cultura. A cultura é o ser humano, é o que há de humano no ser, é aquilo que o distingue dos outros animais. Os produtores culturais, porém, não produzem apenas para si mesmos. Ao produzir para outros, seu produto torna-se mercadoria. O artista cria além do necessário imediato, cria o gozo. E o gozo pode tornar-se necessário e pode tornar-se mercadoria. A arte, transformada em mercadoria, enfrenta o desafio das prateleiras e os rituais do leilão Perigo mortal: quando um artista produz arte, responde à sua maneira de sentir, ver e pensar. Quando sua arte se transforma em mercadoria, introduz-se a demanda externa prioritária.
A arte, transformada em mercadoria,
enfrenta o desafio das prateleiras e os
rituais do leilão.
O artista responde não mais a si mesmo, mas à demanda do mercado, induzida pela propaganda. A vocação cultural torna-se profissão.
Em uma exposição de arte indígena, um dos expositores confessou: "Em nossa aldeia, fazemos estatuetas sem as cores vivas com que pintamos para o mercado paulista -os compradores preferem as coloridas!" Aquele índio era artista, tornou-se artesão: repete modelos. Fazia arte indígena; passou a fazer arte-para-o-branco. As leis do mercado são as leis dos mercadores, assim como a lei da selva é a lei do leão.
Um programa com as idéias e os ideais de Lula -que, alegres, compartimos!- deve proteger os artistas profissionais, nesse segundo capítulo, tão importante: a "Cultura como Profissão".
No processo globalizador, cultura e arte passam a servir ao mesmo propósito do comércio em geral: o lucro, a propaganda e a despersonalização dos artistas. Quando assistimos a um filme de Hollywood, não é só o enredo que temos que engolir goela abaixo: são os chapéus texanos, o uísque de Kentucky, os carros que explodem em modernas pontes de aço e são jogados ao mar sulcado de jet-skis; são as sirenes policiais e as metralhadoras que serão usadas pelos nossos traficantes, "up-to-date" com inovações bélicas. Um filme vende mais mercadorias do que os anúncios comerciais explícitos.
É importante para os globalizantes destruir as culturas nacionais, locais, pois elas são a identidade de quem as produz e, para dominar, é necessário destruir a identidade do dominado.
Para lutar pela nossa vida cultural, temos que estudar nosso passado, neste fantástico presente que estamos vivendo, para podermos inventar nosso futuro: eis a terceira vertente de um inovador plano cultural: a "Cultura como Memória do Passado e como Invenção do Futuro Cultura não é luxo: sou eu, é você, é o Lula! É o povo na praça. "A praça que é do povo, como o céu é do condor!" - já dizia o poeta Castro Alves.
Peço licença ao dramaturgo, para acrescentar que cultura é aquele garotinho curioso, a Glaucia e o Possidônio Sampaio dançando livres, leves e soltos naquela manhã histórica em Santo André.
Enquanto crianças somos desbravadores destemidos. O passar do tempo nos dá uma certa quietude. Precisamos conquistar diariamente a nossa criança e manter viva a nossa dúvida constante para seguirmos adiante. A cultura e o seu conceito não são questões estáticas. Merece estudo e descobertas.
ResponderExcluirSimone Massenzi