Neusa Borges
O ciclo Cultura Sem Carimbo, promovido pelo Fórum Permanente
de Debates Culturais do Grande ABC, convidou o Grupo Cênico Regina Pacis, de
São Bernardo do Campo, para a sua
reunião do mês de julho, ocasião em que vários dos seus integrantes fizeram
relatos sobre a trajetória do grupo teatral mais antigo da Região, criado por
Antonino Assumpção (Sunça, para os mais próximos), jornalista e amante dos
esportes, falecido em 1995.
A fala inicial foi de Hilda Breda, atriz e diretora do
Regina Pacis, que apresentou as atrizes Ana Medici, Fátima Lucas e Emeri
Guglielmetti, cujos depoimentos viriam intercalados com pequenos trechos do
repertório do grupo. Ela também citou os atores José Luiz, Cleide, Fernando,
Luiz Henrique e Fabrício, misturados entre os convidados que foram prestigiar o
encontro.
“O grupo Regina Pacis foi criado no dia 21 de abril de 1962,
dentro da igreja matriz de São Bernardo do Campo, dela se desligando dois ou
três anos depois. O nome foi inspirado num trecho de uma ladainha em louvor a
Nossa Senhora, que, na última frase, tinha Regina Pacis, que vem do latim e que
quer dizer rainha da paz”, disse Hilda.
A diretora comentou que as pessoas sempre perguntam: Quem é
a Regina? Portanto, não se trata de nenhuma homenagem a uma mulher com tal
nome, ou coisa parecida, mas de uma inspiração advinda das missas que eram
rezadas em latim.
Começaram com pequenas esquetes e, algum tempo depois,
partiram para textos mais elaborados.
Atualmente o grupo conta com uma média de 15 pessoas. Há
quem está há mais de 40 anos, como é o caso de Hilda Breda e Ana Medici, que
ingressaram em 1968.
“Fui levada pelas mãos do meu pai, que já fazia parte do
grupo, atuando como ator. Fui acompanhar os ensaios. Ficava encantada com tudo
aquilo. Meu pai no palco e eu na plateia, só assistindo. Eu, ainda uma menina. Um
dia, meu pai disse: Você vai fazer teatro também. No início, fiz figuração, não
tinha fala. Lembro-me de uma encenação em que eu fazia um discípulo de Cristo: colocava
barba, aquelas roupas todas, entrava em cena, não falava nada. Mas achava o
máximo!”, disse Ana Medici.
Alcides Médici, o pai da menina Ana Medici, viria a orgulhar-se
de sua filha que, alguns anos depois, pela sua atuação como melhor atriz
coadjuvante na peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi contemplada
com o Prêmio Governador do Estado. Mas, o orgulho foi recíproco, pois papai
Alcides também foi premiado como melhor ator do referido espetáculo.
Por ter surgido numa época em que a sociedade ainda era
bastante repressora para com as mulheres, sempre são indagados se as atrizes do
grupo sofreram discriminação. Hilda Breda garante que não, pois, segundo ela,
talvez tenha a ver com o fato de que tudo girava em torno de um ambiente
familiar e também da igreja.
Um dia, a bailarina decidiu que também queria fazer teatro.
Fez um curso com Antonino Assumpção, foi convidada a substituir uma atriz que
estava de férias e nunca mais saiu do Regina Pacis.
“Hoje não somente atuo como atriz, mas como coreógrafa, toda
vez que a montagem exige”, disse Emeri Guglielmetti, que, anos depois, levaria
seus dois sobrinhos- netos para o grupo.
Quando indagada sobre em que ano ingressou no Regina Pacis,
Fátima Lucas responde: “Nós entramos em 1983. Sim, nós, pois foi meu marido, eu
e minhas filhas. Eu levava mamadeira nos ensaios. E entramos atendendo ao
convite do Antonino Assumpção, após a nossa participação em um curso de teatro
que ele ministrou na Basf”.
Em seguida, Fátima Lucas interpreta um trecho de um
depoimento de Clarice Lispector, da peça Ah, Mulheres! Aplausos!!!
A Cleide ingressou no grupo em 1977, fazendo figuração. A
sua peça de estreia foi Castro Alves Pede Passagem. Após um ano, o seu futuro
marido, José Luiz do Prado, também passou a integrar a trupe. Tempos depois, era
chegada a vez da filhinha do casal, aos três anos de idade.
“Comecei em 1978, um ano depois que a Cleide. Eu tive um
pouquinho mais de sorte, pois não precisei fazer figuração (risos), pois o
rapaz que fazia o espetáculo infantil Viagem ao Faz de Conta, na época fazia o
serviço militar e, por algum motivo, precisou deixar a peça. Era o papel
principal e eu tive uma semana para decorar o texto. Não tinha nenhuma
experiência com teatro. Foi muito bacana a minha estreia: fiz a primeira fala e
esqueci o resto (risos). Terminado o espetáculo, falei: nunca mais eu volto
para esse negócio. Ensaiei direitinho e, quinze dias depois, voltamos e deu
tudo certo. Fui melhorando, conheci a Cleide e acabei casando com ela. E estou
no grupo até hoje”, disse José Luiz.
“Foi 1978, mas passei a participar mais efetivamente depois
que me casei com a Ana (risos). Minha parte é mais de logística”, disse
Fernando, o marido da Ana Medici.
Fernando lembrou que Antonino Assumpção era de Santo André,
assim como sua família.
Ana Médici ressaltou que, ao chegar a São Bernardo,
Assumpção levou informações importantes não somente na área cultural, mas
também na dos esportes, o que contribuiu enormemente para uma grande parcela da
população que, na época, não possuía as facilidades dos dias de hoje no que diz
respeito ao acesso à informação.
“Eu comecei no ano passado, fazendo Natal No Bosque. A tia
da minha mãe quem me trouxe. Comecei fazendo o galo. No começo foi um pouco
difícil, mas aprendi muita coisa. Mudou o meu jeito de falar, porque eu era
muito tímido, não conseguia nem falar direito. Melhorou muita coisa, gostei
muito. Pretendo continuar”, disse o adolescente Luiz Henrique, sobrinho - neto
da bailarina/atriz Emeri Guglielmetti.
O Fabrício, irmão do Luiz Henrique, que também atuou na peça,
não quis nem saber de conversa, quando a diretora Hilda Breda pediu para que
ele também falasse sobre a sua personagem. Minutos depois, eis que o ator de
quatro anos de idade tagarelava num grupo de pessoas encantadas com sua
desenvoltura e fofurice. Ah, a diretora Hilda Breda nos informou que Fabrício
fez o papel do anjo.
“Período muito difícil aquele da ditadura. Muitos grupos
desistiram de atuar. Os textos tinham de passar pela censura. Naquela época,
não tinha copiadora, fazíamos as cópias em mimeógrafo. Uma cópia ia pra
Brasília, outra para a censura federal, que era na Polícia Federal, na Xavier
de Toledo, em São Paulo. A gente ia lá pra buscar o texto e saber a respeito.
Então eles falavam que, ou a peça poderia ter sido proibida, ou então tinha
cortes. Eles cortavam páginas inteiras, ou, então, que tinha sido liberado o
texto e nós tínhamos que marcar para os censores irem assistir ao espetáculo. Então
eles escolhiam o dia e naquele dia a gente tinha que estar disponível. Naquele
dia e horário, buscá-los para levar a São Bernardo para eles assistirem ao
espetáculo, para ver se liberavam, ou não”, disse Hilda Breda.
O fato é que todos os integrantes do grupo trabalhavam (como
ocorre até hoje) em outras atividades, ou seja, cada qual tinha o seu emprego;
portanto, ninguém vivia do teatro e, por essa razão, era bastante complicada a
logística para buscar censores, que também precisavam ser levados de volta,
muitas vezes nas suas casas, pois, quase sempre, a sede onde atuavam já estava
fechada, devido ao adiantado da hora. Folgados aqueles censores, hein!
“Era classificação etária, na verdade. Eles tinham que ver,
chamavam de ensaio do visual do espetáculo. Só pelo texto era uma coisa, o que
a gente encenava eles tinham que ver. Duas horas da tarde, todo mundo trabalhando:
Gente! Nós temos que fazer o espetáculo para os censores!, disse Ana Medici.
A encenação para aquele pessoal da ditadura, porém,
acontecia de forma diferente da que seria para o público. Hilda Breda relatou
que o grupo sempre lançava mão de disfarces, com o intuito de garantir a
liberação da peça. “Era difícil, mas a gente não deixou de dar voz à
liberdade”, disse ela.
Num sábado de uma noite de 1968, no salão paroquial da
igreja matriz de São Bernardo, haveria encenação da peça Liberdade, Liberdade
(Millor Fernandes e Flávio Rangel), pois já estavam com o certificado de
censura nas mãos. Mas, naquele mesmo dia, ficaram sabendo, através do jornal O
Estado de São Paulo, que o texto estava proibido em todo território nacional.
Sufoco!
Uma ou duas horas
antes do horário marcado para a apresentação da peça, integrantes do grupo
rumaram para o salão paroquial, munidos com o recorte do jornal com o anúncio
sobre a proibição da mesma. Em frente ao local, os homens da censura aguardavam
no interior de uma Veraneio sem placa. Decisão dos atores: Não, não vamos fazer
o espetáculo. Não vai dar.
Cada pessoa que chegava, ouvia as explicações sobre o porquê
que a peça não seria encenada. O recorte do jornal era a prova de que a decisão
não havia partido dos integrantes do grupo.
“As pessoas perguntavam: Não vai ter a semana que vem? A
resposta era: Não, pois estava censurado”, disse Hilda Breda.
No ano de 1979, o grupo montou Liberdade, Liberdade, que,
após mais de uma década censurada, finalmente fora liberada após a chegada da
anistia. Então, numa noite daquele mesmo ano, a peça foi apresentada no teatro
Cacilda Becker, em duas sessões, pois, ao constatar que havia uma enorme fila
de pessoas contornando o Paço Municipal, o diretor Antonino Assumpção decidiu
que haveria sessão dupla. Naquela noite, finalmente, todos os que estavam
ávidos pela liberdade puderam assistir ao espetáculo que ficara censurado por
mais de dez anos.
Pausa para Hilda Breda apresentar trecho do Navio Negreiro,
da peça Liberdade, Liberdade. Aplausos!!!
Após a sua performance, Hilda Breda e Ana Medici continuaram
relatando outros episódios que o grupo enfrentou nos tempos da repressão, porém
Hilda pediu desculpas por, segundo ela, estar falando muito sobre aqueles
fatos.
“Então, ainda falando da censura, nós tivemos pelo menos
dois espetáculos proibidos. Os dois praticamente chegaram na pré-estreia; a gente montou tudo e tal, e
foram proibidos. Os dois foram dirigidos pelo grande diretor, que era Eugênio
Kusnet”, disse Hilda.
Embora nem sempre ocorresse proibição, muitas vezes eram
tantos os cortes que a peça ficava irreconhecível.
“Às vezes, eles liberavam assim: liberavam com cortes nas
páginas tais, tais, tais e tais. Então, você pulava da 20 pra 32; da 32 pra 40.
Aí ficava uma coisa que era um outro texto. E, à vezes, você não tinha como
fazer o gancho, porque eles cortavam aleatoriamente”, disse Ana Medici.
O fato é que havia todo um processo, ensaios e mais ensaios
e, às vésperas da estreia, eis que tudo ia pelos ares, disseram.
“Era muita pressão. Foi um período muito difícil”, disse
Hilda Breda
Por ter sido, sem sombra de dúvida, um período nefasto da
nossa história (assim como foi o da escravidão), relatar as atrocidades
ocorridas é de extrema importância, sobretudo em tempos em que desavisados
ocupam as ruas pedindo o retorno da ditadura militar. Portanto, os integrantes
do Regina Pacis devem, sim, falar, falar e falar, para as mais diferentes
plateias, pois, quem sabe, consigamos colocar na cabeça dos “abestalhados” que
tudo o que não precisamos é da volta da praga que só fez violar direitos
humanos. Credo!
Mas, o fato é que o grupo conseguiu resistir à ditadura
militar, seguiu em frente e continua atuante, apesar das adversidades que
enfrentam nos dias de hoje.
Após encenar um trecho de “Ulisses”, de James Joyce
(aplausos!!!), Ana Medici disse: “Às vezes, a gente desanima, porque não é
fácil, mas a gente ama o que faz e segue em frente. Fazemos com cachê e sem cachê”.
Falaram sobre a dificuldade para conseguirem teatro em São
Bernardo, por conta da atual política de ocupação dos mesmos.
A dificuldade de encontrar textos, seja de autores nacionais
ou estrangeiros, também é fato. Mas, “tudo se resolve, pois a diretora Hilda
Breda, que escreve muito bem, sempre dá um jeito”, disse Emeri Guglielmetti.
A última performance foi de Emeri, que encenou o poema
“Todas as vidas”, de Cora Coralina. Aplausos!!!
Como contar mais de cinquenta anos de história de um grupo
em duas horas? Foram mais de 100 espetáculos montados, com autores nacionais e
estrangeiros; um acervo com cerca de 2.000 itens (que se encontra num espaço
nas dependências de uma escola no Bairro Baeta Neves); participações em vários
festivais, os quais lhes renderam vários prêmios; inúmeras apresentações em
teatros, centros culturais, escolas de periferia etc.
Nos dias de hoje, em que muitos jovens procuram cursos de teatro
apenas como trampolim para virarem atores globais, onde poderão fazer fama,
prestígio e rica conta bancária, os atores e atrizes do Regina Pacis, ao
contrário, continuam subindo ao palco simplesmente porque amam atuar. E atuam
com paixão, dedicação e brilho nos olhos, o mesmo brilho que enxergávamos no
olhar do inesquecível ator Sergio Rosseti, quando o ouvíamos falar sobre o
grupo, nas inúmeras vezes em que nos encontramos durante as suas habituais
caminhadas pelas ruas do centro da São Bernardo que tanto amava e por ela era
correspondido.
Do lugar que deve ter sido reservado para o povo das artes,
o velho Antonino Assumpção deve estar exclamando: Pôxa! E não é que tudo valeu
a pena!
Sunça, e vai continuar valendo, viu!?
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