Alexandre Takara
À
maneira de Machado de Assis no Soneto de Natal, Holando Lacorte se indaga:
“Terei mudado eu ou mudou Santo André?” E responde: mudamos. E prova. Retorna à
sua infância, vasculha suas memórias e fixa-se nas décadas de 1920 a 1940.
Morava na rua Gertrudes de Lima, atrás do Primeiro Grupo Escolar, hoje, Museu
de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. A cidade de sua infância não
existe mais.
Santo André transformou-se
em “palimpsesto”. Perdoem-me o palavrão, mas ele é necessário para entender o
livro de Holando. Umberto Eco, em seu romance O NOME DA ROSA, explica: os “palimpsestos” eram couros de uma
ovelha ou de uma cabra beneficiados para receber escrita. Os textos anteriores
eram lavados, raspados e branqueados com gesso e cal para eles serem
reutilizados. Textos sobrepostos duas ou três vezes. Os pergaminhos eram
escassos e caros e foram utilizados no período anterior a Gutemberg. Com as
novas tecnologias de radiografia, foi possível recuperar textos perdidos da
antiguidade clássica greco/romana, como DE
RE PUBLICA, de Cícero.
Santo
André nesse sentido é uma cidade “palimpsesto”. Camadas de memórias e de
histórias superpostas se revelam apenas
às pessoas de sensibilidade, como a Holando Lacorte. Seu livro tem valor
memorialístico. Aliás, ele mesmo era um “palimpsesto”, pois feito de muitas
camadas superpostas de memórias e história. Nas suas caminhadas pela cidade,
ele percebia o que outros não percebiam porque ele se lembrava da cidade de sua
infância e de suas transformações.
Considere-se
apenas a população de Santo André. Houve um decréscimo, na década de 1950, em
virtude do desmembramento em seis novos municípios e o número reduziu-se a 92
mil habitantes. O recenseamento de 1980 registrou 553.000 habitantes. A
população cresceu mais de 6 vezes em 30 anos! Aconteceu em Santo André e, por
extensão, no ABC, o que acontecera em outras partes do mundo: a
industrialização estimulou a migração que estimulou a urbanização. No entanto,
população decresce a partir de 1980 em virtude da grave crise econômica
nacional e da mudança de empresas para o interior e a outros Estados,
sobretudo, para Campinas e São José dos Campos.
Em 1950, a economia transitava de rural para a
urbana. Haja vista que, em 1950, em Camilópolis, havia um cafezal e pouco adiante, um pasto que
se estendia até os limites da Capital. Os prédios ganharam altura. Aliás, a
construção de residências passou por três fases distintas: de tapera e madeira,
para de tijolos e, hoje, para de concreto armado. Do 18º andar do Edifício
Torre Di Rocco, onde moram meu filho Enzo e Gláucia, sua esposa, construído nos
altiplanos da cidade, que dá de frente para o Parque Antonio Flaquer, cujas
árvores parecem incorporadas ao jardim do prédio, desse andar descortina-se a
cidade de Santo André, bem diferente do tempo de Holando Lacorte. Palimpsesto.
E as edificações antigas ganham novas funções, a começar pelo prédio do 1º
Grupo Escolar que passou a abrigar a Secretaria de Promoção Social e, agora,
Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. E o edifício da antiga Câmara Municipal à rua
Alfredo Fláquer, 76, Centro, passou a abrigar a Biblioteca Municipal e, hoje, o
Cursinho Singular/ Anglo Vestibulares.
Os transeuntes, hoje, são outros, apressados,
a lutar contra a pressão do tempo, bem diferentes daquela época, dos tipos
populares, de caminhar mais pausado, como o guarda-noturno Leopoldo Rodrigues,
forte e valente, acompanhado de seu cão policial, que fazia ronda e soprava o
apito estridente para a tranquilidade dos moradores; a Nina, vendedora
ambulante de verduras e legumes que fazia pregões de seus produtos; a Preta Velha que tinha o dom de curar os
enfermos com seus benzimentos e rezas; o
Ismael Lobo, um dos primeiros taxistas da cidade, conduzia a dona Nina-Parteira
para os serviços de parto. Ela ajudou a trazer centenas de vida a muitas
famílias; a Catarina do bucho que vinha a pé das lonjuras da Vila Luzita para
buscar vísceras no matadouro dos Martinelli; o Záz-Tráz, o pai-de-santo que
mantinha seu centro espírita nas imediações do Cemitério de Vila Assunção; o Tchopa, rufião que explorava o lenocínio com
a própria mulher e quantos garotos lá perderam a inocência.
Holando aponta referências que os
especialistas denominam “lugares da memória”. O Cine Theatro Carlos Gomes, a
Igreja Matriz, a biquinha da rua Luiz Pinto Fláquer, o Grupo Escolar, a venda
dos Rossini na rua dos Napolitanos, hoje Cel. Agenor de Camargo, a estação ferroviária, em frente da qual havia
um bebedouro (de ferro) de água para animais, o que revela a permanência de
traços da economia rural até a década de 1960. Outros acrescentariam que havia
fábrica e comércio de sela de montagem e freios e oficinas de ferradura em
cavalos. Entre esses lugares de memória, lembra-se da sua rua, Gertrudes de
Lima, onde ouvia, às tardes, o chilreio de pássaros que habitavam as árvores do
Grupo Escolar, que ainda hoje existem. Dos folguedos infantis, como
esconde-esconde, pique, roda e boca de forno, hoje esquecidos. E lembra-se do
período anterior à televisão, quando os vizinhos traziam cadeiras à calçada e
estendiam os papos até às 21h30m, hora em que se recolhiam porque, no dia
seguinte, tinham de trabalhar.
Por
falar em trabalho, ele evoca a Tecelagem Ipiranguinha que empregava centenas de
operários. Essa fábrica pertenceu sucessivamente a Camargo, Scarpa, Boyes e
Moinho Santista, mas era conhecida como Tecelagem Ipiranguinha, um dos marcos
da industrialização de Santo André. Mestres, contra-mestres e alguns
funcionários técnicos moravam na vila operária e nas circunvizinhanças. Santo
André era subúrbio da Capital, dela tudo dependia.
E os sons da cidade. Pela manhã, o apito, três
vezes seguidos do Ipiranguinha anunciavam faltarem trinta minutos para o início
do expediente. Duas vezes, quinze minutos. Ouvia-se o plac-plac dos tamancos na
calçada que se misturavam com os chilreios dos pássaros. E uma vez, o apito
indicava o início do trabalho. E
fechavam-se os portões. A cidade se despertava. Passos de transeuntes
misturavam-se com o canto do açougueiro Boschetti que anunciava seus produtos e
entoava canções da sua terra natal, Itália. “Che bella cosa uma giornata a
sole”; ou “Ó dolce Napole, sole beato” ou “Quan’spunta la luna a maré
chiaro...” Santo André era um pedaço da Itália. As famílias chamavam-se Rocco,
Cataruzzi, Pezzolo, Spada, Martinelli, Vezzá, Bellisomi...Lacorte, Poletto,
Bertolotto e centenas de outros nomes. Expressavam-se em português macarrônico.
Até descendentes de japoneses tinham o nome italianado. Em vez de Takara,
Takarolli. A língua portuguesa italianizava-se. Novas palavras são
introduzidas: Barbêro, pizza, viareggio, fanfula, avanti... A culinária
enriquecia-se.
O italiano ingressa na literatura brasileira
com Brás, Bexiga e Barra Funda, de
Antônio de Alcantara Machado. Ele escreve contos, pequenas obras primas.
Personagens como Gaetaninho e Carmela se imortalizaram, além do torcedor de
Palestra Itália, hoje, Palmeiras. O italiano de Alcantara Machado não era o
rico que residia na Avenida Paulista ou no bairro de Higienópolis, ele preferia
o operário dos bairros pobres do Brás, Bexiga e Barra Funda.
Esses tipos eram encontradiços em Santo André.
O Galuzzi, salvo engano, chamava-se Domingos. Ele trabalhava numa barbearia do
Largo da Estátua, bem poderia ser o Nicolino Fior d’Amore, do Alcantara
Machado. A Grazia poderia ser a tecelã Josefina que trabalhava no Ipiranguinha.
Assim, Santo André era uma extensão da Capital. Gerentes, mestres,
contra-mestres e alguns funcionários graduados moravam nas casas da vila
operária construídas ao redor da fábrica como na rua do Sol esquina com a rua
Estrela e a Marquesa de Santos e também na rua D.João VI, na travessa Marajó e
travessa Lucinda e algumas no final da Rua Alfredo Fláquer, hoje, mais
conhecida como a Perimetral. Tudo isso é passado, só os memorialistas se
lembram. E os saudosistas.
Santo André transformava-se. A Santo André das
décadas de 1920 a 1940 tende ao esquecimento. Daí, a importância da educação
patrimonial que o Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa tão bem
desenvolve. Basta visitar suas dependências e contemplar as fotografias da
cidade que não existe mais, apenas algumas reminiscências. Na verdade, a cidade
está repleta de detalhes que os passos apressados de transeuntes não permitem
perceber. As cidades são (in)visíveis, afirmou
Italo Calvino. É preciso contemplar a cidade com o olhar distraído, mas
percuciente. A cidade não se revela fácil. É preciso deixar-se tomar pela
cidade, deixar-se perder. E ver a cidade com outros olhos, de um flaneur,
aquele que flana, caminha a esmo, passeia e sente a alma da cidade. É
necessário educar o olhar.
Um bom exemplo é o que
faziam Ademir Medici e seus amigos, entre os quais me incluo, e os falecidos
Philadelpho Bras e Manuel dos Santos. Caminhávamos ao léu pela cidade, a partir da Prefeitura Municipal
de Santo André. Descíamos a av. Portugal, subíamos a Campos Sales, embrenhávamo-nos
pela Praça do Carmo, subíamos a Oliveira Lima até chegar ao largo da Estátua.
E, depois, seguíamos a Senador Fláquer até chegar ao Museu de Santo André, onde
revíamos fotografias da antiga cidade. Um trecho que se faz em dez a quinze
minutos, demorávamos mais de quatro horas.
Motivo: fazíamos a releitura
da cidade. Lembrávamos da chegada do bispo Dom Marcos de Oliveira em 1953 e de
Dom Cláudio Hummes em 1975 e da proteção
que ambos deram aos operários em greve nos anos de 1978 a 1980. Como a memória é
feita de camadas , vieram à tona muitos fatos significativos do passado mais remoto, hoje, esquecidos: da
fundação da Liga Operária em 1907; do assassinato, em 1919, do operário
Constante Castellani na Oliveira Lima em frente à fábrica Móveis Streiff; da
vinda de Luiz Carlos Prestes a Santo André, na década de 1940, para apoiar o
movimento sindical, cujos líderes, comunistas, foram citados, sob pseudônimo,
no livro, O Cavaleiro da Esperança,
de Jorge Amado. Philadelpho Bras tentou identificá-los, mas não conseguiu,
motivo de ter procurado o Prestes quando esteve em Santo André, a convite do
Colégio Singular/Anglo Vestibulares, para pronunciar cinco palestras, a partir
de 1984. Prestes não se lembrava.
Recordava apenas que pedira ao Jorge Amado registrá-los sob pseudônimo para
proteger a identidade desses operários a fim de evitar a perseguição pelo
governo de Estado Novo, de Getúlio Vargas. Quem esses operários? Miguel Guillén?
Marcos Andreotti? Rolando Fratti?
Quantas lembranças,
verdadeiras aulas de História de Tempo Presente, ou de História Nova, segundo Pierre Nora,
aquela história construída pelos próprios protagonistas. Sim pelos próprios
protagonistas, porquanto Manuel dos Santos foi eleito vereador, em 1947. Chegou
a ser diplomado, mas não tomou posse em virtude do golpe das forças
reacionárias contra os comunistas, ao tempo de Eurico Gaspar Dutra, Presidente.
E Ademir Médici escreveu um livro a respeito, denominado 9 de novembro de 1947: a A Vitoria dos Candidatos de Prestes. Esse
livro pertence à coleção, A Cultura e Os Trabalhadores, organizada
pelo Philadelpho Bras, um cidadão com apenas Grupo Escolar incompleto e
publicado com o financiamento de Fundo de Cultura da Prefeitura de Santo André,
em 1999. Eles são protagonistas da História que fizeram História.
Os três últimos parágrafos
do Prefácio não constam do livro de Holando Lacorte, porque são fatos
posteriores à publicação. Mas revelam a continuidade do processo histórico.
História é construção. Daí a importância do Museu Dr. Octaviano Armando Gaiarsa
como lugar de memória, motivo de esse espaço promover ações educativas. O livro
de Lacorte poderia ser adotado como apoio didático para esse fim, uma forma de
estabelecer liames entre o passado e o presente, antes que caiam no
esquecimento. Porque o passado não é o que passou. É o que ficou. O passado que
passou é o esquecimento, a morte. O passado que ficou são as lembranças, a
vida. E Memórias de um Andreense, de
Holando Lacorte, são relatos de vida de um tempo, em que a cidade e, por
extensão, o ABC, davam os primeiros passos para a modernidade. Reconstruir o
passado é um modo de compreender o futuro.
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