quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Memórias de um Andreense

 Alexandre Takara

    

    À maneira de Machado de Assis no Soneto de Natal, Holando Lacorte se indaga: “Terei mudado eu ou mudou Santo André?” E responde: mudamos. E prova. Retorna à sua infância, vasculha suas memórias e fixa-se nas décadas de 1920 a 1940. Morava na rua Gertrudes de Lima, atrás do Primeiro Grupo Escolar, hoje, Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. A cidade de sua infância não existe mais.

    Santo André transformou-se em “palimpsesto”. Perdoem-me o palavrão, mas ele é necessário para entender o livro de Holando. Umberto Eco, em seu romance O NOME DA ROSA, explica: os “palimpsestos” eram couros de uma ovelha ou de uma cabra beneficiados para receber escrita. Os textos anteriores eram lavados, raspados e branqueados com gesso e cal para eles serem reutilizados. Textos sobrepostos duas ou três vezes. Os pergaminhos eram escassos e caros e foram utilizados no período anterior a Gutemberg. Com as novas tecnologias de radiografia, foi possível recuperar textos perdidos da antiguidade clássica greco/romana, como DE RE PUBLICA, de Cícero.

    Santo André nesse sentido é uma cidade “palimpsesto”. Camadas de memórias e de histórias superpostas  se revelam apenas às pessoas de sensibilidade, como a Holando Lacorte. Seu livro tem valor memorialístico. Aliás, ele mesmo era um “palimpsesto”, pois feito de muitas camadas superpostas de memórias e história. Nas suas caminhadas pela cidade, ele percebia o que outros não percebiam porque ele se lembrava da cidade de sua infância e de suas transformações.

    Considere-se apenas a população de Santo André. Houve um decréscimo, na década de 1950, em virtude do desmembramento em seis novos municípios e o número reduziu-se a 92 mil habitantes. O recenseamento de 1980 registrou 553.000 habitantes. A população cresceu mais de 6 vezes em 30 anos! Aconteceu em Santo André e, por extensão, no ABC, o que acontecera em outras partes do mundo: a industrialização estimulou a migração que estimulou a urbanização. No entanto, população decresce a partir de 1980 em virtude da grave crise econômica nacional e da mudança de empresas para o interior e a outros Estados, sobretudo, para Campinas e São José dos Campos.

    Em 1950, a economia transitava de rural para a urbana. Haja vista que, em 1950, em Camilópolis,  havia um cafezal e pouco adiante, um pasto que se estendia até os limites da Capital. Os prédios ganharam altura. Aliás, a construção de residências passou por três fases distintas: de tapera e madeira, para de tijolos e, hoje, para de concreto armado. Do 18º andar do Edifício Torre Di Rocco, onde moram meu filho Enzo e Gláucia, sua esposa, construído nos altiplanos da cidade, que dá de frente para o Parque Antonio Flaquer, cujas árvores parecem incorporadas ao jardim do prédio, desse andar descortina-se a cidade de Santo André, bem diferente do tempo de Holando Lacorte. Palimpsesto. E as edificações antigas ganham novas funções, a começar pelo prédio do 1º Grupo Escolar que passou a abrigar a Secretaria de Promoção Social e, agora, Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. E  o edifício da antiga Câmara Municipal à rua Alfredo Fláquer, 76, Centro, passou a abrigar a Biblioteca Municipal e, hoje, o Cursinho Singular/ Anglo Vestibulares.

    Os transeuntes, hoje, são outros, apressados, a lutar contra a pressão do tempo, bem diferentes daquela época, dos tipos populares, de caminhar mais pausado, como o guarda-noturno Leopoldo Rodrigues, forte e valente, acompanhado de seu cão policial, que fazia ronda e soprava o apito estridente para a tranquilidade dos moradores; a Nina, vendedora ambulante de verduras e legumes que fazia pregões de seus produtos; a Preta Velha que tinha o dom de curar os enfermos  com seus benzimentos e rezas; o Ismael Lobo, um dos primeiros taxistas da cidade, conduzia a dona Nina-Parteira para os serviços de parto. Ela ajudou a trazer centenas de vida a muitas famílias; a Catarina do bucho que vinha a pé das lonjuras da Vila Luzita para buscar vísceras no matadouro dos Martinelli; o Záz-Tráz, o pai-de-santo que mantinha seu centro espírita nas imediações do Cemitério de Vila Assunção;  o Tchopa, rufião que explorava o lenocínio com a própria mulher e quantos garotos lá perderam a inocência.

    Holando aponta referências que os especialistas denominam “lugares da memória”. O Cine Theatro Carlos Gomes, a Igreja Matriz, a biquinha da rua Luiz Pinto Fláquer, o Grupo Escolar, a venda dos Rossini na rua dos Napolitanos, hoje Cel. Agenor de Camargo,  a estação ferroviária, em frente da qual havia um bebedouro (de ferro) de água para animais, o que revela a permanência de traços da economia rural até a década de 1960. Outros acrescentariam que havia fábrica e comércio de sela de montagem e freios e oficinas de ferradura em cavalos. Entre esses lugares de memória, lembra-se da sua rua, Gertrudes de Lima, onde ouvia, às tardes, o chilreio de pássaros que habitavam as árvores do Grupo Escolar, que ainda hoje existem. Dos folguedos infantis, como esconde-esconde, pique, roda e boca de forno, hoje esquecidos. E lembra-se do período anterior à televisão, quando os vizinhos traziam cadeiras à calçada e estendiam os papos até às 21h30m, hora em que se recolhiam porque, no dia seguinte, tinham de trabalhar.

    Por falar em trabalho, ele evoca a Tecelagem Ipiranguinha que empregava centenas de operários. Essa fábrica pertenceu sucessivamente a Camargo, Scarpa, Boyes e Moinho Santista, mas era conhecida como Tecelagem Ipiranguinha, um dos marcos da industrialização de Santo André. Mestres, contra-mestres e alguns funcionários técnicos moravam na vila operária e nas circunvizinhanças. Santo André era subúrbio da Capital, dela tudo dependia.

    E os sons da cidade. Pela manhã, o apito, três vezes seguidos do Ipiranguinha anunciavam faltarem trinta minutos para o início do expediente. Duas vezes, quinze minutos. Ouvia-se o plac-plac dos tamancos na calçada que se misturavam com os chilreios dos pássaros. E uma vez, o apito indicava o início do trabalho.  E fechavam-se os portões. A cidade se despertava. Passos de transeuntes misturavam-se com o canto do açougueiro Boschetti que anunciava seus produtos e entoava canções da sua terra natal, Itália. “Che bella cosa uma giornata a sole”; ou “Ó dolce Napole, sole beato” ou “Quan’spunta la luna a maré chiaro...” Santo André era um pedaço da Itália. As famílias chamavam-se Rocco, Cataruzzi, Pezzolo, Spada, Martinelli, Vezzá, Bellisomi...Lacorte, Poletto, Bertolotto e centenas de outros nomes. Expressavam-se em português macarrônico. Até descendentes de japoneses tinham o nome italianado. Em vez de Takara, Takarolli. A língua portuguesa italianizava-se. Novas palavras são introduzidas: Barbêro, pizza, viareggio, fanfula, avanti... A culinária enriquecia-se.

    O italiano ingressa na literatura brasileira com Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcantara Machado. Ele escreve contos, pequenas obras primas. Personagens como Gaetaninho e Carmela se imortalizaram, além do torcedor de Palestra Itália, hoje, Palmeiras. O italiano de Alcantara Machado não era o rico que residia na Avenida Paulista ou no bairro de Higienópolis, ele preferia o operário dos bairros pobres do Brás, Bexiga e Barra Funda.

    Esses tipos eram encontradiços em Santo André. O Galuzzi, salvo engano, chamava-se Domingos. Ele trabalhava numa barbearia do Largo da Estátua, bem poderia ser o Nicolino Fior d’Amore, do Alcantara Machado. A Grazia poderia ser a tecelã Josefina que trabalhava no Ipiranguinha. Assim, Santo André era uma extensão da Capital. Gerentes, mestres, contra-mestres e alguns funcionários graduados moravam nas casas da vila operária construídas ao redor da fábrica como na rua do Sol esquina com a rua Estrela e a Marquesa de Santos e também na rua D.João VI, na travessa Marajó e travessa Lucinda e algumas no final da Rua Alfredo Fláquer, hoje, mais conhecida como a Perimetral. Tudo isso é passado, só os memorialistas se lembram. E os saudosistas.

    Santo André transformava-se. A Santo André das décadas de 1920 a 1940 tende ao esquecimento. Daí, a importância da educação patrimonial que o Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa tão bem desenvolve. Basta visitar suas dependências e contemplar as fotografias da cidade que não existe mais, apenas algumas reminiscências. Na verdade, a cidade está repleta de detalhes que os passos apressados de transeuntes não permitem perceber.  As cidades são (in)visíveis, afirmou Italo Calvino. É preciso contemplar a cidade com o olhar distraído, mas percuciente. A cidade não se revela fácil. É preciso deixar-se tomar pela cidade, deixar-se perder. E ver a cidade com outros olhos, de um flaneur, aquele que flana, caminha a esmo, passeia e sente a alma da cidade. É necessário educar o olhar.

    Um bom exemplo é o que faziam Ademir Medici e seus amigos, entre os quais me incluo, e os falecidos Philadelpho Bras e Manuel dos Santos. Caminhávamos  ao léu pela cidade, a partir da Prefeitura Municipal de Santo André. Descíamos a av. Portugal, subíamos a Campos Sales, embrenhávamo-nos pela Praça do Carmo, subíamos a Oliveira Lima até chegar ao largo da Estátua. E, depois, seguíamos a Senador Fláquer até chegar ao Museu de Santo André, onde revíamos fotografias da antiga cidade. Um trecho que se faz em dez a quinze minutos, demorávamos mais de quatro horas.

    Motivo: fazíamos a releitura da cidade. Lembrávamos da chegada do bispo Dom Marcos de Oliveira em 1953 e de Dom Cláudio Hummes  em 1975 e da proteção que ambos deram aos operários em greve nos anos de 1978 a 1980. Como a memória é feita de camadas , vieram à tona muitos fatos significativos  do passado mais remoto, hoje, esquecidos: da fundação da Liga Operária em 1907; do assassinato, em 1919, do operário Constante Castellani na Oliveira Lima em frente à fábrica Móveis Streiff; da vinda de Luiz Carlos Prestes a Santo André, na década de 1940, para apoiar o movimento sindical, cujos líderes, comunistas, foram citados, sob pseudônimo, no livro, O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado. Philadelpho Bras tentou identificá-los, mas não conseguiu, motivo de ter procurado o Prestes quando esteve em Santo André, a convite do Colégio Singular/Anglo Vestibulares, para pronunciar cinco palestras, a partir de 1984.  Prestes não se lembrava. Recordava apenas que pedira ao Jorge Amado registrá-los sob pseudônimo para proteger a identidade desses operários a fim de evitar a perseguição pelo governo de Estado Novo, de Getúlio Vargas. Quem esses operários? Miguel Guillén? Marcos Andreotti? Rolando Fratti?

    Quantas lembranças, verdadeiras aulas de História de Tempo Presente,  ou de História Nova, segundo Pierre Nora, aquela história construída pelos próprios protagonistas. Sim pelos próprios protagonistas, porquanto Manuel dos Santos foi eleito vereador, em 1947. Chegou a ser diplomado, mas não tomou posse em virtude do golpe das forças reacionárias contra os comunistas, ao tempo de Eurico Gaspar Dutra, Presidente. E Ademir Médici escreveu um livro a respeito, denominado 9 de novembro de 1947: a A Vitoria dos Candidatos de Prestes. Esse livro pertence à coleção, A Cultura e Os Trabalhadores, organizada pelo Philadelpho Bras, um cidadão com apenas Grupo Escolar incompleto e publicado com o financiamento de Fundo de Cultura da Prefeitura de Santo André, em 1999. Eles são protagonistas da História que fizeram História.

    Os três últimos parágrafos do Prefácio não constam do livro de Holando Lacorte, porque são fatos posteriores à publicação. Mas revelam a continuidade do processo histórico. História é construção. Daí a importância do Museu Dr. Octaviano Armando Gaiarsa como lugar de memória, motivo de esse espaço promover ações educativas. O livro de Lacorte poderia ser adotado como apoio didático para esse fim, uma forma de estabelecer liames entre o passado e o presente, antes que caiam no esquecimento. Porque o passado não é o que passou. É o que ficou. O passado que passou é o esquecimento, a morte. O passado que ficou são as lembranças, a vida. E Memórias de um Andreense, de Holando Lacorte, são relatos de vida de um tempo, em que a cidade e, por extensão, o ABC, davam os primeiros passos para a modernidade. Reconstruir o passado é um modo de compreender o futuro.

 

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