quinta-feira, 3 de março de 2011

Do Entrudo ao carnaval

Neusa Borges

Ainda hoje há muitos mistérios e controvérsias sobre a origem da festa carnavalesca. Há os que afirmam que ela surgiu nos ritos agrários das primeiras sociedades de classes, mas outros acreditam que a primeira folia aconteceu no Antigo Egito ou na civilização Greco-romana.

O fato é que os primeiros colonizadores portugueses trouxeram para cá o Entrudo, que podemos caracterizar como sendo o Carnaval antes do “Carnaval”. O Entrudo era de dois tipos: um que acontecia no interior das casas e entre amigos, o chamado “familiar” e outro que se espalhava pelas ruas, envolvendo o povo mais pobre e os escravos, o denominado “popular”.

Se o Entrudo Familiar era uma brincadeira mais inocente, pois consistia basicamente em atirar limões-de-cheiro e jogar água no oponente, a coisa era bem diferente no chamado Entrudo Popular. Nas ruas, valia água suja da sarjeta, restos de comida, tinta, urina, enfim, tudo o que estivesse à mão era transformado em arma pelos entrudistas.

Como as críticas ao Entrudo foram ficando cada vez mais severas, uma vez que nem mesmo a igreja estava livre dele, pois, segundo relata o Diário do Rio de Janeiro, de 19 de fevereiro de 1841, o importante Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, fora invadido pela polícia, chamada para conter a rebeldia de alguns colegiais que haviam decidido zombar dos padres, os tais festejos foram proibidos no final do século dezoito.

As quadrinhas publicadas no periódico O Mágico (29 de fevereiro de 1862) revelam a sensação de insegurança que o Entrudo Popular proporcionava, sem contar que era explícito o incomodo causado com a inversão de valores.

O tal brinquedo de Entrudo
Que lhe chamam Carnaval,
É uma idéia infernal:
Confundem-se hierarquias,
É tudo igual em três dias.
(...)
Por exemplo um melquetrefe
Vir às casas sem licença,
Sem cerimônia e sem desença
Entrudá-lo e quebrar tudo
É um arbítrio de entrudo.

Mesmo proibido oficialmente e, apesar das condenações e até prisões e punições das pessoas que fossem apanhadas molhando outras pessoas, a brincadeira continua a acontecer. Por outro lado, mantinha-se a tradição do Entrudo Familiar, que era até louvado na imprensa.

Na primeira metade de 1840, as nossas elites sentiram que algo precisava ser feito, diante da percepção de que o povo não estava nem aí para a proibição oficial.

Naquela época, a chamada burguesia, que buscava formas de ocupar seu espaço, importa de Paris o que acreditava ser a solução para por um fim nas grosserias entrudísticas: os bailes à fantasia.

Na verdade, tratava-se de um período em que os mais endinheirados copiavam os franceses em tudo, uma vez que a França era considerada a capital do mundo civilizado

A elite carioca acreditava que, ao importar uma diversão nos moldes franceses, iria por um fim nas brincadeiras consideradas rudes e de mau gosto.

De fato, há relatos na imprensa do enorme sucesso dos bailes, onde imperavam a sofisticação dos trajes, as músicas de bandas e um leque de diversões diferentes. No entanto, as festas excluíam os populares, que continuavam se divertindo nas ruas jogando água, farinha, tinta e tudo o que estivesse ao alcance das mãos.

Anos depois, quando as elites decidem sair às ruas desfilando em seus automóveis, de onde acenavam para a população que apenas assistiam ao espetáculo, mal poderiam imaginar que o povão não deixaria por menos.
Excluídos das brincadeiras dos ricos, o povo começou a se organizar e sair às ruas batendo latas.

Quando as ruas começam a ser tomadas por foliões comemorando o Carnaval, no final do século dezenove, não existiam blocos nem escolas de samba. Tempos depois, surgiram os cordões e os ranchos carnavalescos. Maiores e mais organizados que os cordões, os ranchos acabaram dando origem às escolas de samba atuais.

No início do século vinte, os sambas-enredo passam a ser peça fundamental das escolas de samba.
Os ritmos africanos trazidos pelos escravos demoraram a ser incorporados ao Carnaval, em razão principalmente do preconceito. Para se ter uma idéia como o som dos negros era visto pela alta sociedade, até meados de 1930, não se tocava samba, nem algo semelhante, nos bailes de Carnaval promovidos pelas elites.

O Carnaval carioca passa a servir de modelo para as outras cidades brasileiras, tais como Recife, Salvador, São Paulo, Fortaleza, entre outras. No entanto, com o decorrer dos anos, cada qual foi temperando a festa carnavalesca com elementos típicos da cultura local.

Na realidade, o poder público, durante muitos anos, não interferiu diretamente na festa, deixando que as tensões e disputas fossem resolvidas pelos próprios envolvidos nela. 

No entanto, no final dos anos 1920, a situação começa a mudar, uma vez que o governo municipal do Rio de Janeiro enxerga que as atividades ligadas ao CarnavaL poderiam render bons negócios, principalmente para o setor turístico.

Getúlio Vargas, que tinha uma política nacionalista, ao perceber que poderia ganhar prestígio com uma festa tão popular, determina que os temas exaltassem o governo e o Brasil.

Sem sombra de dúvida, a utilização passa a ocorrer, mas, a questão é que os sambas-enredo também traziam em seus conteúdos denúncias de miséria, de desigualdade social e de corrupção. Vale lembrar o Carnaval de 1989, quando o genial Joãozinho Trinta levou para o sambódromo o seu desfile-protesto, escancarando a miséria e o abandono de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza.

Com a proximidade de mais um Carnaval, é comum ouvirmos muitas reclamações sobre o Carnaval dos dias atuais; há quem diga que ele se tornou um evento pop, voltado para a mídia e para o turismo, julgado por critérios como “organização” que, originalmente, era o que ele combatia, uma vez que a idéia era que fosse livre de regras.

Na verdade, não há unidade no Carnaval brasileiro. Temos o Carnaval baiano, com seus trios elétricos; o pernambucano, com suas alegorias folclóricas; os desfiles das fantásticas escolas de samba do Rio de Janeiro e das não menos fantásticas escolas de São Paulo.

Como toda história de manifestações das culturas populares, a do Carnaval é uma história de infinitas fusões, trocas, apropriações, empréstimos, influências e reciclagens.

O Carnaval daqui a vinte anos, ou mesmo dez, sofrerá mais mudanças do que as que ocorreram nas últimas décadas, em razão da velocidade com que tudo se transforma. Porém, o importante é que ele não perca as suas características internas e o seu caráter lúdico.

Durante os dias de Carnaval, podemos nos esquecer de tudo aquilo que nos oprime, até mesmo o fato de estarmos excluídos da comissão de frente, fora do enredo.

Um comentário:

  1. Valioso depoimento, Dalila. O que seríamos sem memória? É nosso maior patrimônio!

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