quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Preservação versus modernidade

Silvia Helena Passarelli

Mais uma vez, a região ABC assistiu a demolição de um de seus importantes referenciais. Mais uma vez, a região assistiu impotente a ação do Poder Municipal em destruir a memória e o patrimônio cultural, apesar de desde a década de 1980, debater questões ao redor do tema da preservação e, principalmente, prometer a criação de órgãos destinados a garantir a preservação da memória e do patrimônio.
Desta vez foi em São Caetano, mas poderia ter sido em qualquer outra das nossas cidades que ainda consideram novas construções, o uso do concreto, do vidro e do PVC como sinônimos de modernidade.
Desta vez, foram as ruínas da Fábrica Matarazzo, onde o conjunto de galpões industriais que integravam a paisagem do bairro Fundação se transformaram em montanhas de tijolos. Em nome da construção de um “parque ecológico” (como a Prefeitura de São Caetano tem denominado o novo projeto) os tijolos da fábrica foram postos abaixo, negando o próprio conceito de ecologia, que segundo do Dicionário Houaiss é a “ciência que estuda as relações dos seres vivos entre si ou com o meio orgânico ou inorgânico no qual vivem; é o estudo das relações recíprocas entre o homem e seu meio moral, social, econômico”.

Ruínas da Fábrica Matarazzo (acervo da pesquisa 7cidades, 2007)


Desta vez, foi São Caetano, a mesma cidade que há muitos anos criou uma autarquia com foco na preservação da memória – a Fundação Pró-Memória – e recentemente anunciou a criação de um conselho de defesa do patrimônio cultural. Mais uma das incongruências entre o planejar e o fazer das políticas públicas do ABC.
Nesse sentido, teremos um mais novo espaço na cidade que nega a história da própria cidade e da região, que apaga as marcas do homem sobre o território como se só a partir do novo se constrói o futuro, que esconde o nosso passado industrial.
Temos assistido isso em vários momentos nas nossas cidades: o mercado imobiliário, com recursos para financiar novas construções, criou uma nova forma de morar que envolvem a construção de grandes terrenos com várias torres de habitação e que a propaganda vende com as marcas de segurança, lazer completo, tranquilidade... Para isso são necessárias grandes glebas com infraestrutura completa e rapidamente as paisagens das nossas cidades vão se transformando, nossas ruas ganham muitos novos carros e uma rua tranquila, um bairro sossegado se transformam num grande caos pelos transtornos causados pela construção e, depois, pelo aumento de veículos na rua que antes tinha apenas casas e passa a ter altos edifícios com apartamentos e muitas vagas nas garagens.
Os poderes públicos, calados diante destas transformações, são, na realidade, aliados ao processo de transformação, mesmo quando fazem um discurso pela preservação da qualidade de vida de todos.
É o que mostra esta ação na Fábrica Matarazzo: destrói-se o passado em nome de um parque que, com certeza, necessitará de um ou mais edifícios para comportar as atividades de lazer, para receber os visitantes da nova área de lazer. Será que antigos edifícios não se prestam para novos usos?
Em vários locais do mundo temos assistido experiências de reaproveitamento de edifícios antigos para novos usos: habitação, escritórios, lojas estão ocupando, por exemplo, as antigas instalações do Puerto Madero, em Buenos Aires onde o novo convive com o passado e com as memórias dos moradores e do lugar e novas atividades dão vida ao antigo porto.

As antigas docas do Puerto Madero, principal marca da identidade do porto construído nos primeiros anos do século XX, hoje abrigando escritórios, restaurantes e outros usos que atraem turistas e moradores (fonte: http://www.puertomadero.com/index.cfm)

O mesmo podemos ver em muitas cidades pelo mundo: a preservação do antigo, a reciclagem de edifícios, a implantação de novos usos em áreas deterioradas e até mesmo de novas edificações, sem perder a história de outros tempos.
Um outro exemplo na Alemanha nos traz muitas lições: trata-se da revitalização das cidades do Vale do Ruhr, antiga área industrial produtora de aço e carvão no Noroeste da Alemanha (dela fazem parte cidades como Dortmund, Essen e Duisburg, entre outras), onde um século de indústria pesada deixou uma herança desastrosa para o meio ambiente, com impacto negativo sobre a qualidade de vida: rios poluídos, solo contaminado e elevados níveis de emissões tóxicas industriais, principalmente de dióxido de enxofre devido a queima de carvão e diesel.
A região do Vale do Ruhr assistiu uma intensa deterioração com o fechamento de minas de carvão e fechamento de siderúrgicas nos anos 1970 e 1980, tornando a partir da segunda metade do século XX que tornou obsoleta toda a estrutura produtiva ali instalada. O desenvolvimento da legislação ambiental e o aperfeiçoamento da tecnologia levaram as antigas cidades do vale ao abandono, com grande massa de desempregados.





Para fazer frente a este cenário, de decadência e poluição, e criar novas alternativas de desenvolviemnto, o governo regional lançou em 1989 um plano de revitalização ecológica, económica e urbana intitulado International Building ExhibitionEmscher Park (IBA) que durou 10 anos. O plano, elaborado numa ação conjunta entre os poderes públicos (governos regional e municipais) e iniciativa privada (ONG’s, industriais, instituições de educação e cultura, etc.) integrou as dezessete cidades do Vale do Ruhr com o objetivo de impulsionar novas idéias e projetos no sentido da reconversão do espaço regional. Seus objetivos específicos se prendem às áreas de desenvolvimento urbano, social, cultural e ecológico, considerados como setores básicos para impulsionar e direcionar as mudanças da antiga região industrial em processo de transformação.
Esta foi a primeira lição do IBA que precisamos aprender e praticar: a articulação de dezessete cidades deterioradas e decadentes trabalhando conjuntamente para a busca de novas alternativas de desenvolvimento, onde as palavras-chave foram sustentabilidade e cooperação, na contramão da constante competição que os tempos atuais promovem. Uma experiência que, anos depois, também vivenciamos quando nos anos 1990 assistimos a formação da Câmara Regional do Grande ABC.
A proposta das cidades do Vale do Ruhr foi a de tornar a área a capital cultural da Europa, criando atratividades para a atividade turística e a implantação de serviços e novas indústrias, agora com novas tecnologias não poluentes. A ação para a recuperação ambiental de toda a área ocorreu, principalmente com:
      Criação de um grande corredor verde que integra as cidades da região: o Parque Natural Emscher, 320km2, cerca de 40% da área total da região;
      Transformação econômica, fortalecendo as áreas de logística, tecnologia ambiental, eco-turismo, serviços empresariais etc.;
      Desenvolvimento de novas ofertas culturais e de recreação de modo a aumentar a auto-estima da população;
      Inovação na construção de moradias, junto com a reabilitação de antigos bairros de operários;
      Conservação e reciclagem de uso das antigas estruturas industriais para fins culturais, recreativos, turísticos e para o estabelecimento de novas empresas.
 O Vale do Ruhr continua sofrendo intervenções e recebendo novas propostas para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes, tendo atingido muitos de seus objetivos iniciais, como por exemplo, ter sido eleito Capital Europeia da Cultura no ano de 2010.
Muitas das suas antigas indústrias têm sido objeto de visitação a exemplo da antiga mina de carvão de Zollverein, instalada em meados do século XIX e que se manteve em produção até 1986, e que hoje abriga o Museu Ruhr e desde 2001 foi declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO.


Vista da mina de carvão de Zollverein (foto de Peter Vieller in: http://www.ruhrmuseum.de/de/index.jsp)


Ou ainda a intervenção da antiga Usina de Gelsenkirchen, em Gelsenkirchen no Vale do Ruhr, Alemanha, atualmente um dos pontos altos do roteiro industrial e cultural conhecido como o Emscher Park, onde é possível a prática de esportes radicais nas paredes da antiga instalação industrial.

Antiga Usina Nordstern, (fonte da imagem: http://www.mai-nrw.de/Gewerbepark-Nordstern.39.0.html?&L=1)


Alpinismo em antigo galpão industrial Nordsternpark, em Gelsenkirchen no Vale do Ruhr, Alemanha (fonte: http://www.vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/04.042/636)


Exemplos como este se repetem por todo o mundo: boas práticas que reúne a preservação da história local e o respeito ao passado com o reaproveitamento de antigas estruturas da cidade e a implantação de novos usos o que só aumenta o orgulho das novas gerações pelo passado e permite sonhar com inúmeras novas possibilidades para o futuro. Boas práticas que devemos conhecer (e existem inúmeras publicações que divulgam estas práticas em livros ou na internet), aprender e, sempre que possível, experimentar.
Hoje, ao lado dos morros de tijolos que resultaram da ação do poder público nas antigas instalações da Fábrica Matarazzo, só podemos, mais uma vez lamentar a perda. Fica a esperença – uma vez que hoje reclamam pela imprensa regional a preservação da chaminé –  que, algum dia, a população abandone um pouco as compras de natal, os preparativos para as férias, para o carnaval e para as demais festas, e se mobilize para questionar e propor políticas públicas mais adequadas para o desenvolvimento da nossa região.

7 comentários:

  1. Quero parabenizar a Profa. Silvia pelo importante questionamento que faz às políticas para a cultura na região do ABC. Até quando vamos "assistir" impassíveis estes verdadeiros atentados contra nossa memória e patrimonio cultural?

    Marcelo Dino Fraccaro

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  2. Mesmo que seja um despropósito esperar que as administrações públicas tenham sensibilidade para a necessidade de preservar documentos da memória coletiva, seria de se esperar, ao menos, que fossem capazes de perceber as possibilidades econômicas de iniciativas de reaproveitamento de edificações históricas que podem ensejar outras formas de desenvolvimento.

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  3. Silvia Helena Passarelli7 de fevereiro de 2011 às 12:03

    Caro Julio, concordo com você, no entanto, as questões relacionadas com a cultura ainda vão exigir um esforço maior da sociedade civil para serem pautadas como prioridades de nossas administrações públicas: por enquanto, o patrimônio cultural ainda é tratado como coisa do passado, sem perspectiva do futuro. Temos muito trabalho pela frente, e em diversas frentes de trabalho.

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  4. As iniciativas que prestigiam o reaproveitamento de edificações históricas, além de objetivar uma maximização de recursos, de preservar a memória cultural do povo e da região que é explícita em suas formas arquitetônicas, faz a população repensar sobre a necessidade de se ter memória e de manter vivo o passado, pois sem o conceito anterior, não existe o posterior (futuro). No mais, em regra, esse reaproveitamento se mostra de muito bom gosto. Simone Massenzi.

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  5. Silvia Helena Passarelli,

    Gostei muito do seu texto e dos comentários aqui postados! Como o tema é pertinente gostaria de ler sua opinião sobre a seguinte situação: (segue link) http://tribunaescrita.blogspot.com/2011/01/blog-post.html

    Desde já agradeço

    Manoel Hélio
    poeta

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  6. Parabéns pelo texto, Sílvia. Pena que os que deveriam lê-lo não o façam, e mesmo que o façam, sejam incapazes de perceber que é a inteligência quem pede a preservação e o "retrofit", e não o saudosismo. Mas, para isso, seria preciso justamente o que lhes falta: a inteligência.
    Um abraço.

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  7. Silvia Helena Passarelli,

    Eu tenho uma preocupação com relação à pseuda atuação dos “Capitães da Memória” em defesa do Patrimônio Histórico tombado e dos que viram a sertombados na região do “ABCD Paulista”, principalmente na cidade onde moro São Bernardo do Campo, copie e colei o link acima postado pelo poeta Manoel Hélio e estou indignadíssimo, nenhum dos “Capitães da Memória” se manifestou diante de tamanha agressão ao Patrimônio Histórico da minha cidade!
    Tenho absoluta certeza que apartir de 1º de janeiro de 2013, vão chover textos, teses, monografias, artigos, balanços, mesas específicas em congressos e seminários da região sobre o dia em que a Chácara Silvestre situada a Avenida Wallace Simonsen, 1800, Bairro Nova Petrópolis, “antiga propriedade de veraneio da família Simonsen, vincula-se à história da cidade pela atuação de Wallace Simonsen em prol da emancipação de São Bernardo do Campo, esta ocorrendo em 1945, tendo sido ele seu primeiro Prefeito.
    Em razão de sua importância histórica e arquitetônica, como marco da arquitetura residencial da elite dos anos 30, com forte influência do estilo europeu, presente no destaque dado às vigas na fachada principal, foi tombada pelo COMPAHC-SBC, em 1987, com base na Lei 2611, de 18/06/1984, através do Decreto nº 8674, de 16/01/1987.
    Hoje o local abriga o acervo do folclore/cultura popular e do Museu Raposo Tavares sob responsabilidade da Secretaria de Cultura de São Bernardo do Campo”; passou a ser utilizada como uma Unidade Básica de Saúde, os “Capitães da Memória” não se furtaram em se mostrar indignados com tamanha aberração!
    Os “Capitães da Memória” levantaram até bandeiras através de seus blogs, suas colunas de jornais, suas cadeiras universitárias, seus grupos independentes, ONGs, movimentos, etc. e tal, mas só após o dia 1º de janeiro de 2013, porque será?
    Segue um novo link para a minha indignação:
    http://tribunaescrita.blogspot.com/2011/01/ubs-vila-sao-pedro-mais-nova-atracao-da.html

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