Christian Piana*
28 de novembro de 2010 é o dia em que o site da organização internacional Wikileaks, mantido por ativistas, jornalistas e cientistas de todo o mundo, entre eles o representante mais conhecido e influente Julian Assange, publicou uma substancial quantidade de documentos reservados que tinham como foco as operações do governo e da diplomacia estadunidense no mundo.
Trata-se da difusão não autorizada de 251.287 documentos que continham informações confidenciais enviadas de 274 embaixadas americanas ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, em Washington. Tais documentos incluem numerosas avaliações sobre comportamento publico e privado dos chefes de Estado do exterior, sobre relações entre Estados Unidos e Extremo Oriente e sobre posições relativas dos mais importantes países aliados.
A reação a essa publicação provocou um efeito colossal: os documentos receberam centenas de milhares de acessos em poucas horas, a maioria dos jornais do mundo publicaram vários artigos logo após a difusão na web; os governantes envolvidos, atingidos e também envergonhados, manifestaram reações muito fortes. O site sofreu vários ataques informáticos para ocultar os seus conteúdos. Assange foi acusado e preso por crimes de natureza sexual, um verdadeiro pretexto posto que, como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, “procurar, receber e difundir” informação não representa um crime, mas, ao contrário, um direito humano inalienável. O caso de quebra de sigilo confidencial produzido pela ação de Wikileaks se transformou então no “fenômeno Wikileaks”, continuamente comentado e nomeado nos jornais e televisões de todo mundo.
Para compreender melhor o fenômeno, é necessário voltar nossa atenção a alguns aspectos da recente história do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa.
No final do século XIX, a grande difusão de fotografias documentais, que continham cenas reais, estimulou tipógrafos e editores a publicá-las (apesar dos notáveis limites técnicos) no meio de comunicação mais importante da época: o jornal, fato que deu origem à imprensa ilustrada. Esta não apenas era visualmente mais atraente, mas contava com imagens que, ao lado dos artigos escritos, comprovavam a exatidão dos fatos narrados, sua veracidade.
Na história das mídias, a ânsia por eficazes testemunhas da realidade certamente influenciou o desenvolvimento da televisão e o seu sucesso em termos de popularidade. Neste meio, em que os comentários dos jornalistas se sobrepõem a muitas imagens que não deixam dúvidas – aquilo de que se fala é verdade, é transmitido e é em tempo real.
Apesar disso, os visíveis defeitos e limitações da imprensa e dos noticiários televisivos, entre os quais a falta de transparência e o modo hierárquico e pouco ético de selecionar a informação, geraram a busca por meios igualmente fruíveis mas alternativos; alternativos pela quantidade de assuntos a tratar, pela maneira de aprofundá-los e no modo pelo qual a informação é editada e difundida.
Junto à luta de muitos movimentos culturais por uma mídia mais ética e democrática (que infelizmente não trouxe significativas transformações), temos assistido nos últimos 10 anos o crescimento da internet sempre com maior intensidade na função de um verdadeiro canal alternativo de comunicação.
A Web, com uma velocidade espantadora, se transformou no lugar mais desejado para a troca colaborativa de conhecimento. A sua estrutura dinâmica de participação (denominada web 2.0) permitiu que todos os seus internautas pudessem interagir de maneira inédita com a fonte das notícias e com os demais receptores delas. Entre todas as possíveis definições, o slogan de um dos sites mais populares atualmente, ‘youtube’, comunica perfeitamente a dimensão da revolução dos conteúdos presentes na rede: broadcast yourself –transmita você mesmo. Não dependa dos temas escolhidos e transmitidos das mídias tradicionais; faça a sua comunicação, agora e por conta própria. É simples!
O primeiro vídeo divulgado no ‘youtube’ (no dia 23 de abril de 2005 por Jawed Karim, fundador do site) se chama Me at the zoo, e mostra o próprio autor na frente de uma jaula com dois elefantes durante um passeio ao zoológico. Esse é o exemplo concreto de como também o universo particular de cada internauta pode se transformar em argumento, pode ser publicado, assistido e, sobretudo, discutido, compartilhado.
A Internet não apenas abriu um conteúdo maior e diversificado de conhecimento, mas transformou todos (todos aqueles que tem acesso a um computador e uma conexão) em potenciais produtores de informação, consumidores e multiplicadores ao mesmo tempo.
Porém, se todos podem produzir informação, como podemos distinguir uma fonte verídica de uma falsa? O que garante que quem publica determinado conteúdo tem a autoridade para tal? As pessoas que participam são tantas, não são rostos familiares como os dos apresentadores de telejornal... como podemos confiar neles?
Essas perguntas, que por anos governaram as opiniões sobre a web, nos levam a uma reflexão importante: o caráter absolutamente aberto à participação fez, sim, que por anos esse território fértil para a exploração não visse reconhecida a sua total eficácia como meio legítimo de informação.
A estrutura reticular e livre da internet não é concebida a priori. Existe um grande esforço na busca por gerir a propriedade dos espaços (a quem pertença tal coisa), mas a sua navegabilidade não segue percursos impostos. Para chegar a um determinado site não devemos necessariamente seguir uma rua, virar um cruzamento, passar por um viaduto obrigatório, passar obstáculos, como se estivéssemos em uma grande metrópole de estrutura previamente planificada por urbanistas. Podemos nos mover em direção ao nosso destino atravessando livremente cada conteúdo que aparece em nosso caminho.
Por isso todos nós, internautas inexperientes, percorríamos no início de seu uso público, um espaço que parecia um aglomerado indistinto de tudo, no qual fontes confiáveis de informação se confundiam com outras não-confiáveis, onde sites com finalidade nobre dificilmente eram distintos de outros puramente comerciais ou cheios de apologia a valores que não nos interessam. A falta aparente de elementos comprovantes da realidade, de confirmação de veracidade, que foram tão importantes no desenvolvimento dos jornais e da televisão, confirmou o claro dominio destas como confiaveis “janelas do mundo”.
Com o passar do tempo, aconteceu algo que exalta estudiosos da ciência da comunicação e cidadãos comuns desejosos de informação livre: a massa indistinta de conteúdos, aquele enorme aglomerado em auto-construção de conhecimento começa a se organizar de forma espontânea.
De fato, espontaneamente se viam percursos sempre mais nítidos, construídos a partir da necessidade real de seus fruidores e da sempre mais elaborada experiência em percorrer a Rede. Graças ao próprio uso, multiplica-se a capacidade de travessia dos internautas, reforça-se uma cultura web, uma cultura de pesquisa reticular de informação, multiplicam-se os pontos de referência para os navegadores capazes, então, de distinguir aquilo que é confiável do que não é. Nós que éramos internautas inexperientes, perdidos entre um blog de um amigo, um site pornô, um que vende bugigangas de um outro que faz um jornalismo realmente independente, fizemos com que a legitimidade dos conteúdos da internet fosse sempre mais clara e a sua credibilidade substitui pouco a pouco aquela televisiva, até chegarmos à data mais representativa: o dia da explosão do “fenômeno Wikileaks”.
Vazamento de notícias reservadas e revelação de documentos secretos não são uma novidade. O fato de que existam verdades escondidas e interesses privados dentro das numerosas ações dos governos é sabido. O que muda com Wikileaks é a tomada de consciência da dimensão do fenômeno: a circulação planetária de massas enormes de dado em um canal que conta hoje, finalmente, com maior confiabilidade
O dia 28 de novembro de 2010 é uma data a comemorar: o dia em que não só todos os cidadãos tiveram pela primeira vez à sua disposição aquele tipo de segredo que, até então, normalmente, apenas a História registrava - a posteriori e conforme a conveniência dos poderosos; o dia em que os mesmos cidadãos tiveram, pela primeira vez, possibilidade de destrinchar muitos fatos e desmascarar mentiras que os mesmos ‘poderosos’ contaram; sobretudo, foi também o dia em que a liberdade de circulação de informações demonstrou de uma vez por todas que na internet se depositou um novo saber social, cuja importância e utilidade é percebida mais pelos cidadãos que pelos detentores de informações reservadas.
E, para reafirmar que essa data não é simplesmente o dia de um escândalo, observe-se o fato de que comemoram o 28 de novembro não só os colaboradores do site ou um círculo restrito de técnicos informáticos ou fãs da cybercultura, mas todos os cidadãos famintos de democracia de qualquer nação e classe, na busca por transparência e renovação, cansados de serem objeto de uma comunicação velha e mentirosa.
A “emergência” Wikileaks, provavelmente, vai provocar o aumento da segurança física e logística dos dados bancários. Será intensificada a caçada aos vários Assange do mundo e serão cogitadas as estratégias midiáticas de sempre para justificar novos limites em favor da ‘segurança’. Vão dizer que para proteger as informações de cada indivíduo será necessário levantar barreiras onde não existem, mas será uma outra mentira. A única coisa que se pode proteger com os limites é a manutenção de um poder fechado, opaco e não-transparente, irredutível à lógica da simples repressão. Não eram de interesse público as informações publicadas em Wikileaks? Não tínhamos o direito de saber?
Por sorte, um novo mundo está aqui, circula entre nós e não pode ser removido. Parece que são, já, cem mil as pessoas que fazem afluir novos documentos a Wikileaks. Nesses dias, a maior enciclopédia livre, aberta e participativa do mundo (Wikipedia) realizou uma campanha para arrecadar fundos para a própria sustentação sem publicidade, que resultou em 16 milhões de dólares em 50 horas, provenientes de cerca de meio milhão de pessoas de 140 paises. E seria possível continuar com uma enorme lista de exemplos que confirmam que tais modelos são destinados a se difundir, que a população está já dando um voto de confiança à liberdade de informação.
A lição de Wikileaks é, portanto, que a livre fruição do saber e do conhecimento deve ser um elemento estável do panorama social pois é inimiga de uma lógica arcaica, a qual desejamos que não nos pertença mais.
*Christian Piana (Stazzano- Italia, 1978) é formado em artes visuais com especialização em fotografia e trabalha desde 2002 como fotoreporter free-lance, dedicando-se a reportagens humanitárias no Perú, Bolivia, Venezuela, Brasil e na ex-Iugoslávia. Desde 2005, reside em São Bernardo do Campo, onde trabalha como arte-educador de multimidia em projetos sociais e espaços culturais públicos. Desde 2009 coordena a Editora Popular Lamparina Luminosa premiada como Ponto de Cultura.
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