quarta-feira, 15 de março de 2017

Grande ABC: uma potencia na cultura, uma mandala carente de políticas culturais

Agnes Franco
Neri Silvestre 


Antes de iniciar esta breve reflexão, é preciso entender que o ABC é uma região periférica da Grande São Paulo, o que significa que, como todas as periferias, sofre a marginalização e acesso limitado a todo tipo de recurso, assistência e política de Estado se comparado às capitais. Graças às indústrias aqui instaladas no início do século passado, todo o ABC prosperou graças a mão de obra operária. Assim sendo, o ABC carrega a cultura operária em suas veias. Da luta pelo direito dos trabalhadores, passando pela migração de nordestinos, descendentes de escravos e imigrantes que emprestaram sua força de trabalho, sem esquecer da resistência do movimento estudantil e tradicionais núcleos artísticos: o Grande ABC é uma mandala de tradições e etnias muito diversas. Carece esclarecer que, apesar de suas características históricas, como em todo o país, a região sofre com o desconhecimento acerca do amplo significado de ‘cultura’: por serem os artistas a vanguarda dos debates nesta temática, comumente a cultura é reduzida à arte. Não são considerados elementos fundamentais da cultura local. A forte presença da comunidade chilena na região e seus quitutes, a importância da comunidade árabe e religião islâmica, as centenas de terreiros de religiões de matriz africanas não mapeados, as tradicionais feirinhas de artesanato e culinária etc. Isso posto, não fica difícil imaginar porque esta região, que já foi referência na cultura rock e punk, dos grupos de samba e núcleos teatrais, das famosas casas com música ao vivo e shows gratuitos ao ar livre – inclusive nas periferias - hoje sofre com políticas extremamente apartadas do povo e da valorização cultural. Algumas tentativas de avanço nesta área foram ensaiadas nos últimos anos, mas, não foram suficientes para que gerasse massa crítica e resistente. Com a derrota massiva da esquerda nas últimas eleições, a produção cultural perdeu muito. E tem sido alvo de ataques. Ribeirão Pires fundiu a Secretaria de Cultura com a de educação, bem como Santo André e São Bernardo do Campo. Em Rio Grande da Serra a pasta é reduzida a uma diretoria. Mauá tem Secretaria, mas, não tem Sistema Municipal de Cultura (PMC). São Caetano do Sul tem um PMC votado, um conselho atuante, mas não tem orçamento. Diadema, que foi modelo de fomento ao Hip-Hop, perece. E como resultado, como sempre, quem paga é o mais pobre. Um bom exemplo foi o corte na verba para as escolas de samba promovido por algumas cidades – incluindo as maiores (Santo André e São Bernardo) - que resultou na anulação dos desfiles carnavalescos de 2017. A privação do carnaval de rua/desfiles é simbólica. Só sabe o significado cultural, de pertencimento e território que uma escola de samba promove, quem se dá ao trabalho de vivenciar uma agremiação além de seu caráter de entretenimento – o que poucos (ou nenhum?) gestores da região se dispõem a fazer. Nas escolas estão presentes a música, a poesia, promoção ao comércio, oficinas de formação e esporte, religiosidade, festas com comidas tipicamente brasileiras e tantos outros elementos que compõem a cultura. Mais que isso, é também simbólico porque o carnaval – ponto máximo dos 365 do ano vividos por toda uma comunidade, é feito majoritariamente por pessoas simples: é a mão preta que sangra no tamborim, a empregada doméstica que costura uma fantasia, o trabalhador braçal que compõe o samba, o porteiro que dá aulas de capoeira e varre o chão da quadra, o jovem que expressa-se nos grafitis expostos e comunidades que passam o ano todo se dedicando a uma festa que promove o direito à cidade e território, que acolhem, e que, tantas vezes, cumprem o papel que deveria ser do Estado. É necessário um amplo debate com a população, que aborde desde o fazer artístico até a gestão cultural. Acreditamos que seja necessário um orçamento em torno de 3% da arrecadação do município, com eficientes sistemas municipais de cultura para executar o orçamento. Para isso, a cultura deve estar na centralidade do governo e fomentar a economia no setor de modo que haja espaço para a comercialização da produção simbólica de arte e cultura – o que é altamente benéfico social e economicamente. Para atingir este objetivo, estamos na resistência. Temos feito um trabalho de discussão sobre a cultura, mas ainda é necessário envolver toda a população neste debate para culminarmos na verdadeira ampliação do conceito e o direto a cultura, é preciso fazer  pressão  nos funcionários: nos gestores públicos, que precisam entender que o orçamento deste setor é uma questão prioritária. A cultura precisa ser transformada em direito, porque faz parte processo civilizatório, porque possibilita, porque é possível pacificar – e a conjuntura pede resistência, mas, também unidade. É o momento dos coletivos, de as classes medias que estão nas universidades e movimentos de resistência fazerem uma luta conjunta com os periféricos, os artistas, e com toda a população. As escolas de samba e outras comunidades precisam estar no centro desse debate. A cultura deve ser ampla, aberta, conectada ao nosso tempo e usar todos os meios possíveis pra desenvolver seu potencial inclusivo e empoderador. E não descansaremos, até chegar lá. Porque somos feito de poesia, luta, música, perfume de acarajé e senso crítico.



Parceria 

Agnes Franco é jornalista especializada em políticas públicas. Foi atriz, produtora, bailarina, envolveu-se em escolas e rodas de samba, no ABC e Vale do Ribeira. É candomblecista, ambientalista e luta pelo combate ao racismo, direito das mulheres e povos tradicionais.

Neri Silvestre Agitador cultural, gastrônomo, formação em gestão cultural, membro do Sarau na quebrada, do ponto de cultura Circomunidade e militante da cultura.

3 comentários:

  1. Parabéns pela clareza e sabedoria ao citar o que acontece atualmente no nosso abc.
    Estamos padecendo, perdendo nossos jovens cada vez mais para o tráfico, estamos cada vez mais vendo artistas da luta exaustos lutando sozinhos.muito bom ter lido esse texto hj.

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  2. Obrigada pelo espaço, Dalila!! <3
    Agnes

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