Agnes Franco
Neri Silvestre
Antes de iniciar esta breve reflexão, é preciso entender
que o ABC é uma região periférica da Grande São Paulo, o que significa que,
como todas as periferias, sofre a marginalização e acesso limitado a todo tipo
de recurso, assistência e política de Estado se comparado às capitais. Graças
às indústrias aqui instaladas no início do século passado, todo o ABC prosperou
graças a mão de obra operária. Assim sendo, o ABC carrega a cultura operária em
suas veias. Da luta pelo direito dos trabalhadores, passando pela migração de
nordestinos, descendentes de escravos e imigrantes que emprestaram sua força de
trabalho, sem esquecer da resistência do movimento estudantil e tradicionais
núcleos artísticos: o Grande ABC é uma mandala de tradições e etnias muito
diversas. Carece esclarecer que, apesar de suas características históricas,
como em todo o país, a região sofre com o desconhecimento acerca do amplo
significado de ‘cultura’: por serem os artistas a vanguarda dos debates nesta
temática, comumente a cultura é reduzida à arte. Não são considerados elementos
fundamentais da cultura local. A forte presença da comunidade chilena na região
e seus quitutes, a importância da comunidade árabe e religião islâmica, as
centenas de terreiros de religiões de matriz africanas não mapeados, as
tradicionais feirinhas de artesanato e culinária etc. Isso posto, não fica
difícil imaginar porque esta região, que já foi referência na cultura rock e
punk, dos grupos de samba e núcleos teatrais, das famosas casas com música ao
vivo e shows gratuitos ao ar livre – inclusive nas periferias - hoje sofre com
políticas extremamente apartadas do povo e da valorização cultural. Algumas
tentativas de avanço nesta área foram ensaiadas nos últimos anos, mas, não
foram suficientes para que gerasse massa crítica e resistente. Com a derrota
massiva da esquerda nas últimas eleições, a produção cultural perdeu muito. E
tem sido alvo de ataques. Ribeirão Pires fundiu a Secretaria de Cultura com a
de educação, bem como Santo André e São Bernardo do Campo. Em Rio Grande da
Serra a pasta é reduzida a uma diretoria. Mauá tem Secretaria, mas, não tem
Sistema Municipal de Cultura (PMC). São Caetano do Sul tem um PMC votado, um
conselho atuante, mas não tem orçamento. Diadema, que foi modelo de fomento ao
Hip-Hop, perece. E como resultado, como sempre, quem paga é o mais pobre. Um
bom exemplo foi o corte na verba para as escolas de samba promovido por algumas
cidades – incluindo as maiores (Santo André e São Bernardo) - que resultou na
anulação dos desfiles carnavalescos de 2017. A privação do carnaval de
rua/desfiles é simbólica. Só sabe o significado cultural, de pertencimento e
território que uma escola de samba promove, quem se dá ao trabalho de vivenciar
uma agremiação além de seu caráter de entretenimento – o que poucos (ou
nenhum?) gestores da região se dispõem a fazer. Nas escolas estão presentes a
música, a poesia, promoção ao comércio, oficinas de formação e esporte, religiosidade,
festas com comidas tipicamente brasileiras e tantos outros elementos que
compõem a cultura. Mais que isso, é também simbólico porque o carnaval – ponto
máximo dos 365 do ano vividos por toda uma comunidade, é feito majoritariamente
por pessoas simples: é a mão preta que sangra no tamborim, a empregada
doméstica que costura uma fantasia, o trabalhador braçal que compõe o samba, o
porteiro que dá aulas de capoeira e varre o chão da quadra, o jovem que
expressa-se nos grafitis expostos e comunidades que passam o ano todo se
dedicando a uma festa que promove o direito à cidade e território, que acolhem,
e que, tantas vezes, cumprem o papel que deveria ser do Estado. É necessário um
amplo debate com a população, que aborde desde o fazer artístico até a gestão
cultural. Acreditamos que seja necessário um orçamento em torno de 3% da
arrecadação do município, com eficientes sistemas municipais de cultura para
executar o orçamento. Para isso, a cultura deve estar na centralidade do
governo e fomentar a economia no setor de modo que haja espaço para a
comercialização da produção simbólica de arte e cultura – o que é altamente
benéfico social e economicamente. Para atingir este objetivo, estamos na
resistência. Temos feito um trabalho de discussão sobre a cultura, mas ainda é
necessário envolver toda a população neste debate para culminarmos na
verdadeira ampliação do conceito e o direto a cultura, é preciso fazer pressão
nos funcionários: nos gestores públicos, que precisam entender que o
orçamento deste setor é uma questão prioritária. A cultura precisa ser
transformada em direito, porque faz parte processo civilizatório, porque
possibilita, porque é possível pacificar – e a conjuntura pede resistência,
mas, também unidade. É o momento dos coletivos, de as classes medias que estão
nas universidades e movimentos de resistência fazerem uma luta conjunta com os
periféricos, os artistas, e com toda a população. As escolas de samba e outras
comunidades precisam estar no centro desse debate. A cultura deve ser ampla,
aberta, conectada ao nosso tempo e usar todos os meios possíveis pra
desenvolver seu potencial inclusivo e empoderador. E não descansaremos, até
chegar lá. Porque somos feito de poesia, luta, música, perfume de acarajé e
senso crítico.
Parceria
Agnes Franco é jornalista especializada em políticas públicas. Foi atriz,
produtora, bailarina, envolveu-se em escolas e rodas de samba, no ABC e Vale do
Ribeira. É candomblecista, ambientalista e luta pelo combate ao racismo,
direito das mulheres e povos tradicionais.
Neri Silvestre Agitador cultural, gastrônomo, formação em gestão cultural, membro do Sarau na
quebrada, do ponto de cultura Circomunidade e militante da cultura.
Parabéns pela clareza e sabedoria ao citar o que acontece atualmente no nosso abc.
ResponderExcluirEstamos padecendo, perdendo nossos jovens cada vez mais para o tráfico, estamos cada vez mais vendo artistas da luta exaustos lutando sozinhos.muito bom ter lido esse texto hj.
Obrigada pelo espaço, Dalila!! <3
ResponderExcluirAgnes
Parabéns
ResponderExcluirMuito bom!!!