domingo, 24 de fevereiro de 2013

Alpharrabio: sementes vivas

Celso Horta*

 
     Não sei mais escrever. Talvez tenha vivido demais. Demasiados os invernos. Sem cuidados bastantes, talvez a alma tenha definhado. Os muitos rascunhos eletrônicos jamais desabrocharam em versos.
      Com o dedilhar ágil calejado na velha Olivetti, aprendi a atender as encomendas da dialética materialista. Encomendas que dividiam o mundo entre o positivo, o revolucionário, e o positivismo conservador do doutrinarismo idealista, que separavam os companheiros e os inimigos de classe.
     Escrevi muito ao longo destes anos. Ghostwriter, editorialista, projetista de castelos e executivo de sonhos. Sempre acreditando nas legiões de combatentes invisíveis, velhos conhecidos das muitas guerras enfrentadas. Tanta fé e esperança me fizeram desaperceber o isolamento cada vez maior. Neste lado esquerdo do mundo, quebrei meus dedos nos teclados de aço do pragmatismo contemporâneo.
     Por tudo isto, desaprendi a arte de escrever.
    Começar de novo. Aprender o sentido das palavras. Assombrar-se com as mensagens dos símbolos. Sem preconceitos, sem dogmatismos. Recuperar o sentido da dialética que não reconhece deuses, demônios, heróis e bandidos.
     Ou seja, recomeçar. Tudo de novo, como o neto recém-nascido. E como? Olhando ao redor em busca dos semelhantes, dos sedentos em aprender o sentido das coisas. Como na homenagem de Caetano a Carlos Marighella.
 
 foto: alice agrela teles veras

     No meio desta caminhada, por este deserto globalizado, a surpresa. A festa dos 21 anos da Alpharrabio, ontem, 21 de fevereiro de 2012. Um evento que vai ficar na história cultural do ABC. Uma brisa suave nascia do semblante efusivo da nossa escritora e agitadora cultural Dalila Teles Vera fazendo daquele bunker cultural da rua Eduardo Monteiro, em Santo André, um verdadeiro oásis.
     A alegria contagiante da nossa anfitriã testemunhava a riqueza simbólica de sua vida de pastora de idéias. De cada letrinha, dos milhares de livros que ocupam as prateleiras da Alpharrabio, e das centenas de edições que Dalila colocou no mundo.
     E eram centenas os que compartilhavam aquele momento de prazer. Centenas os que, como eu, ali se alimentavam avidamente do prazer de reencontrar sentido para cada conceito, para cada palavra cultuada ao longo da vida.
foto: alice agrela teles veras

     Entre os convidados, ali estava também o espírito de Salvador Bahia, o velho personagem de Possidonio Sampaio, que registrou o instante em que o vulcão social do ABC vomitou lavas. Atropelando-me nas minhas próprias incertezas perguntei-lhe:
     - E, então, meu caro Salvador Bahia, você acha que já viu tudo na vida?
     A resposta veio incontinenti:
     - É lógico que não. Ainda temos muito para ver.
     Foi o bastante para mim. Eu parecia recarregado de energia, pronto para esperar mais um século. Para reconhecer que somos muitos os que estão perplexos diante da vida. Os que não conseguem reconhecer as bandeiras que desfraldaram. Os que estão correndo atrás de repensar o simbólico para matar a sede de humanidade provocada pelo consumismo desenfreado do presente.
     Em síntese, para retomar o sentido das palavras e o caminho da humanidade. Foi este o sentido do aniversário da Alpharrabio. Do culto às letras gravadas na bandeira de Dalila. Outro dia um amigo, um engenheiro agrícola, me deu uma semente de caju. Eu a enterrei no vaso e passei a aguá-la todos os dias a espera do seu broto. Ainda nem sinal de vida. Mas vai brotar.
     Como vão brotar as idéias. Como as palavras vão se ressignificar. Como vão voltar a escrever os que, como eu, desaprenderam a arte. Afinal, as palavras são sementes imperecíveis. Como a Alpharrabio e os que cultivam as palavras.
     Enquanto, isto, há textos fantásticos que dialogam com este vazio. Como o que segue, de Lucy Dias e Roberto Gambini, autores que descobri em mensagens da internet.
     “Não houve síntese, porque há uma negação. Havia uma recusa, por parte do elemento dominante, de incluir a identidade dos dominados. Os filhos da terra são maltratados e desprezados. Nós precisamos de símbolos de comunhão, de síntese, de junção das partes. O Brasil tem muita energia vital, mas tem uma tristeza enorme. A tristeza daquele que não vê o seu valor reconhecido, daquele que sabe que podia ser diferente, que não tinha que ser assim, que arrasta uma coisa que não combina. Isso entristece porque não se consegue mudar, mas a gente sofre. Cada uma das barbaridades que acontecem a cada dia, as barbaridades brasileiras … Há um débito psíquico que, se não for formulado e trabalhado, não permitirá que surja um processo de conscientização da identidade. ...continua a haver um mecanismo perverso de impedir que pedaços da alma brasileira façam parte do todo. …começamos com um ato de destruição e de negação. …duas civil izações se encontram, se juntam, mas uma nega a outra. Aí reside o problema… não levamos em conta o contingente de alma daqueles que foram dominados. Então, aí se oculta uma sabotagem…a sociedade brasileira está amarrada mas não sintetizada …não houve amálgama, não houve síntese. Por quê? Porque houve uma negação. … não houve reconhecimento, comunhão, e continua sendo uma dimensão dramática, da qual só podemos ver os efeitos… isso cria um ser mal-resolvido. Nós precisamos de símbolos de comunhão, de síntese, de junção das partes para a produção de uma nova resultante. Esses símbolos nos orientariam para um tipo de reflexão coletiva que tivesse como objetivo superar esse estado que nos aprisiona. Isso nos ajudaria em termos de superação e de afirmação do Brasil… Essa situação que vivemos prende energia, impede o aparecimento do novo. É preciso soltar essas amarras para deixar fluir a criatividade cultural e social. Deixar sur gir novas formas de sociabilidade, que depois vão virar projetos políticos e sociais. Quando se destrava uma estrutura profunda que aprisiona a energia, essa força vem à tona. É disso que o Brasil precisa.

 * jornalista, mestre em comunicação e regionalidade pelo IMES

2 comentários:

  1. Viva o Apharrabio!Viva a Dalila Teles Vera! Viva o Celso Horta!

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  2. Pois é, caro Celso Horta, pelo que vejo talvez você não saiba mesmo mais escrever (o que acho pouco provável)como jornalista, preso a normas rígidas exigidas pelo meio, mas passou a escrever de uma outra forma, mais livre, mais...literária, ainda que o tom, se me permite, me pareça um tanto quanto melancólico (quem não anda assim?). Da parte que me cabe, devo-lhe agradecimentos. Não só por este honroso texto, como também por seu comparecimento à festa do Alpharrabio, à festa de todos nós.

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