segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sarau da Quebrada em Limeira*


Chegamos. Uma faculdade intacta, linda, com personalidades da arte e da política condecorando os pilares, varais de textos e grafites poéticos nos tapumes. Havia algo ainda por fazer ali, a construir, preencher. Havia espaços vazios, espaço pra mais gente, mais ensino, mais juventude.
Tirei a foto de um desses grafites com dois bonecos palito se tocando e o aviso: “Cuidado: Frágil”. Achei a minha cara.
Logo os estudantes se aglomeraram em volta do projetor e começou o filme. Um filme tenso, porque o Sarau da Quebrada vem da quebrada, entende? E a realidade da quebrada é pesada, não é uma coisa tênue não. A realidade da quebrada, da favela, é dolorida muitas vezes, apesar da risada que as pessoas de lá teimam em cultivar.
Era um desenho imitando os de antigamente, com personagens infantis perseguidos pela sociedade, pela polícia e, principalmente, pelo descaso. Divertiam-se em praça pública, porque aquela era a casa deles, e se viravam pra comer, pra amar, pra se divertir.
De cara, trouxe pra perto daqueles privilegiados jovens da Unicamp de Limeira, a dureza de um menor de rua, de uma pessoa de rua que convive com a pobreza, com a carência de tudo o que é necessário pra viver, e tem que inventar a diversão, o sonho, pra poder sobreviver de algum jeito. A dureza de um mundo muito distante da maioria deles e que deve ser, em contrapartida, o foco do poder de transformação que o jovem universitário possui. Este jovem que tem o privilégio de estudar, conhecer e gozar de benefícios maiores e mais dignos que a reles sobrevivência.
Então, começou o sarau, a poesia do gueto. Neri convidando a moçada, e os rappers Araújo e Ominadabes tomando conta do espaço com suas rimas, sua ginga, seu impacto. Um contraste aquela fúria, aquele gás dos dois perante a suavidade dos jovens de Limeira. Aqueles rostinhos atentos e serenos, joviais e tranquilos e a expressão encrudescida e grave dos rappers da quebrada, apesar de todo humor, apesar de toda gargalhada e capacidade de levar a vida do melhor jeito. Apesar da habilidade de sobreviver, era notória a distância entre eles e a plateia (uma distância significativa que com o decorrer das apresentações foi ficando menor e menor).
Então vieram as mulheres. Glaucia, eu, Lids, Márcia. Cada uma com suas características. Glaucia com sua poesia e habilidade de trazer as pessoas pra perto, fazer-nos compreender, aproximar. Márcia e Lids com seu vocabulário intacto da periferia, correlato com a fala popular. Lindo de se ouvir, de se encarar de frente, sem medo, preconceito ou rigor. Contemplando, apenas.
Fiquei até com vergonha, depois delas. Mulheres que têm o que dizer, fruto da realidade e, principalmente, do orgulho de fazer arte de realidade, com competência e brilho.
Mas não tinha acabado... Aquela banda maravilhosa, Zambas, com aquela vocalista esplêndida, fora dos estereótipos de beleza (apesar do rosto de boneca e da pele reluzente), mas com uma voz incrível, meu Deus! Que talento! Maravilhosa! Assim como os músicos todos da banda, que fizeram um show delicado, agregador, contagiante.
Uniram-se os rappers com aquele som sofisticado, e foi tudo de bom. Uniram-se as poesias da plateia, dos universitários, ao baixo, bateria e violão e eles cantaram juntos, dançaram juntos – e os estudantes que primeiro observavam surpresos, distanciados, entraram na dança.
Uma lista de gente queria falar, muitos se encorajaram em dizer os próprios textos, outros os de outras pessoas, e houve performances, mais músicas, combinações variadas de improbabilidades que deram totalmente certo.
E depois, a ciranda (duas vezes). A poesia coletiva. A conexão.
A periferia já não era tão distante da realidade daqueles universitários. E aqueles universitários já não eram ofensivos à periferia naquele momento.
Depois que o sarau acabou, uma realidade e outra estavam conectadas. As pessoas, interligadas. O viver e o sobreviver relacionando-se com respeito, harmonia, aprendizado.
É ali que a periferia tem que chegar. E é à periferia que o universitário deve ir.
Não apenas com o corpo (pras festas e pra alegria), mas também com a mente, para o choque de realidade. E para o embate, a fim de proporcionar a transformação não apenas da favela, da pobreza e da marginalidade, mas de si mesmos, da alienação, do privilégio inconsciente e banalizado.
Tudo acabado, depois de uma bela apresentação de dança de uma menina ainda mais linda, os músicos recolheram seus instrumentos e fomos embora.
Longa viagem... Um dia seguinte comprido e exaustivo, afinal era só uma terça-feira e o trabalho não podia esperar. Todo mundo ali, apesar da poesia, da música, da disposição de fazer arte e de, principalmente, perseguir o sonho de um mundo mais justo, tem que lutar muito pra se manter, manter a família e continuar no caminho do bem.
Mas depois do Sarau da Quebrada de Limeira, aquela luta com certeza continuava com muito mais força e esperança de realizar.
Obrigada, parceiros, por acreditar na conexão, me permitirem participar e crescer no meio de vocês, ler dentre os clamores poéticos de vocês e de toda a periferia, meus poemas tão individuais e subjetivos. Obrigada, por acolherem também o mal existencial que existe em toda pessoa, de qualquer classe social, e por se dispuserem a acrescentar a cada um e todos, a importância do crescimento social equânime como condição pra felicidade particular.
Enquanto no mundo houver alguém passando fome, frio, sofrendo de falta de cuidados médicos, sem acesso à água limpa, educação de qualidade, moradia digna, haverá dor mesmo dentro do ser humano mais abastado. Haverá depressões sem motivo, falta de vontade de viver, mesmo na pessoa mais rica e privilegiada.
Obrigada por me ajudarem a perceber que a felicidade não é uma obra que se constrói apenas pra si, mas sim a realização de uma humanidade inteira.
Até a próxima.

Lari Germano
4 de outubro de 2012

* texto publicado originalmente no blog Café Paris
http://naoapenaspalavras.blogspot.com.br/2012/06/por-que-voce-chora.html

5 comentários:

  1. O texto não se limita apenas à descrição romântica de um evento. Um olhar bem atento revelará muitas questões subjacentes que merecem o debate. Simone Massenzi.

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  2. Com certeza, Simone. Obrigada por ir um pouco mais fundo e perceber que o verdadeiro intuito tanto do Sarau da Quebrada quanto deste texto é bem mais abrangente que apenas fazer poesia. Obrigada também pela oportunidade de divulgar neste espaço. Aproveito para esclarecer que este texto foi postado inicialmente no blog cafehparis.blogspot.com.

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  3. Lari, obrigada por indicar a fonte da publicação original do texto. Não agradeça a oportunidade, é bom encontrarmos pelo caminho algo que nos acresente. Simone M.

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  4. corrigindo a digitação: "que nos acrescente". Simone M.

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