sexta-feira, 27 de maio de 2011

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA
DIREITO, NÃO PRIVILÉGIO *

Marcelo Dino Fraccaro 

A Constituição Federal de 1988, conforme seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo II, garante como direitos sociais em seu Art. 6º, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

É conhecida como “constituição cidadã”, justamente porque, contrariando a lógica das cartas anteriores, busca reforçar o primado do cidadão frente ao Estado. Tal avanço, inserido no contexto histórico do processo de redemocratização em meados da década de 1980, contribuiu para que fossem abertas possibilidades reais para o necessário protagonismo da sociedade civil e sua participação efetiva na reordenação política do país.

No entanto, mesmo diante dos avanços, inimagináveis em períodos históricos anteriores, os parlamentares constituintes de 1988 lamentavelmente cometeram alguns equívocos e omissões. O artigo já citado acabou por deixar de fora o direito do cidadão à cultura entre aqueles direitos reconhecidos como direitos sociais.

Importante dizer, a cultura não deixa de ser reconhecida pela CF-1988, como observa os artigos 5º, IX, XXVII e XXVIII; 23, III a V; 24, VII a IX; 30, IX , 215 e 216, porém ainda não a coloca no mesmo grau de importância dos reconhecidos direitos sociais.

Há mais de quatro décadas, em 1966, foram aprovados em Assembleia Geral das Nações Unidas, os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos Sociais e Culturais – PIDCP e PIDESC. Estes dois importantes instrumentos, juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, compõem a assim denominada Carta das Nações Unidas. O Brasil é signatário da Carta e ratificou os dois pactos em 1992. Em seu preâmbulo, o PIDESC já expressa claramente:

Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos. (PIDESC, Preâmbulo, 1966)

Também é fundamental para o reconhecimento da cultura a Convenção da UNESCO de 2005 sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais, ratificada pelo Brasil em 2006.

Assim, uma vez que reconhecemos e ratificamos tão importantes acordos internacionais quanto aos direitos culturais, devemos objetivar e corrigir a omissão passada. Dessa forma, entende-se a importância da iniciativa que tramita no Congresso Nacional acerca da Proposta de Emenda Constitucional 49 de 2007 que busca definitivamente inserir o direito à cultura enquanto direito social no artigo 6º.

Enquanto detentor de uma Carta Magna reconhecida como cidadã, e enquanto signatário dos documentos e acordos internacionais já mencionados, é de responsabilidade do Estado brasileiro respeitar, proteger e implantar políticas públicas que universalizem e garantam o acesso aos direitos civis e políticos, e aos direitos econômicos, sociais e culturais.

Por sua vez, por políticas públicas entendemos “o conjunto de arranjos institucionais complexos que se expressam em estratégias ou programas de ação governamental e resultam de processos – eleitoral, legislativo, administrativo, orçamentário, judicial – juridicamente regulados, visando coordenar os meios à disposição do Estado para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”. (Bucci, 2006)

E de acordo com esta referência conceitual, sem deixar de lado a supremacia do Estado enquanto principal agente responsável pelas políticas públicas diante de suas prerrogativas quanto a respeitar, proteger e implantar políticas que garantam os direitos fundamentais, queremos destacar a importância de que estratégias e programas governamentais obedeçam de fato aos ditos “objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.

Somente levando-se em conta a identificação com a realidade política e social é que políticas podem ser propostas, elaboradas e implantadas, sob o risco de que, se assim não for, não terem não apenas sua eficácia, mas principalmente sua legitimidade contestada. Aqui, chegamos ao que de mais importante caracteriza esse processo de legitimação na elaboração e implantação das políticas públicas, a efetiva participação da sociedade civil.

Entendemos aqui a sociedade civil no seu sentido mais amplo, que expressa, segundo o conceito gramsciano interpretado por Norberto Bobbio, como “a base da qual partem as solicitações às quais o sistema político está chamado a responder; como o campo das várias formas de mobilização das forças sociais que impelem à conquista do poder político”. (Bobbio, 1998)

Desta forma é que a mobilização de diferentes atores sociais como movimentos, sindicatos, associações de classe, universidades, ONGs, atua hoje no sentido não apenas de reivindicar, mas principalmente propor, elaborar e acompanhar a implantação de políticas públicas.

O movimento organizado em torno da criação da Lei Cultura Viva se constitui como um dos exemplos de mobilização por políticas públicas para a cultura. Expressando o desejo de uma ampla parcela da sociedade, que entende que o acesso à cultura e a sua livre manifestação é um direito e não um privilégio para poucos, busca transformar em projeto de lei o Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura. Os resultados expressivos ao longo dos últimos anos, em termos de apoio e financiamento aos Pontos de Cultura conveniados com o MinC, hoje mais de 2.000 em todo o país, sustenta a necessidade de que o programa seja ampliado e institucionalizado enquanto lei federal. Debates com a sociedade e intensa mobilização vêm fazendo com que o movimento ganhe força significativa. Um manifesto com assinaturas em apoio à Lei Cultura Viva vem ganhando espaço na Internet.

Hoje, mais que nunca, é preciso que movimentos como o da Cultura Viva encontrem espaço para reforçar o sentido de cidadania e de participação nos rumos da política no Brasil. Isso não apenas na cultura, mas em todos os segmentos. Importa, definitivamente, que reconheçamos que construções políticas verdadeiras não se consolidam em gabinetes e bastidores. Somente se constroem com participação popular. E que direitos não se ganham, nem se negociam. Direitos se conquistam.

* Publicado originalmente em 20 de maio de 2010 no portal do Ministério da Cultura.

Referências

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política: Vol. 2. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.

BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo, Ed. Saraiva, 2006

Manifesto pela Cultura Viva: http://www.culturaviva.org.br/

MORAES, Alexandre (org). Constituição da república federativa do Brasil de 5 de outubro de 1998 – Emendas Constitucionais n º 1 a 56 Leis n° 9.868, de 10-11-1999, e 9.882, de 3-12-1999 Emendas Constitucionais de Revisão n° 1,2,3,4,5 e 6 Índice Remissivo. 29° Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

WILDE, Ralph. Uma visão geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos. In: POOLE, Hilary (org.). Direitos Humanos: referências essenciais. São Paulo: Edusp, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Se você não tem cadastro no Google, pode deixar seu comentário selecionando a opção Nome/URL no campo Comentar como logo abaixo.