quinta-feira, 5 de maio de 2011

Patrimônio cultural no ABC - Acervos ao deus-dará

Dalila Teles Veras

            Ao longo de duas décadas à frente da livraria e espaço cultural Alpharrabio, venho me deparando com uma angústia sempre crescente diante do destino dos acervos (livros, objetos e documentos) daqueles que vão desaparecendo e, com eles, sua memória.

            Falo de pessoas (artistas, intelectuais, sindicalistas, memorialistas, colecionadores, etc.) que ao longo da vida foram armazenando objetos, quer seja por uma ânsia de conhecimento ou pelo simples dever de ofício e que, no seu conjunto, representam e possuem um enorme significado simbólico para a compreensão de nossa história. A angústia se dá por conta do destino  (ou não destino) que, via de regra, esses acervos enfrentam após a morte de seus proprietários. As famílias, por circunstâncias ou desinteresse mesmo, não sabem o que fazer desse acúmulo de coisas que, conforme Walter Benjamin, representam uma "completa enciclopédia mágica" e, para o  entendimento de uma época, são instrumento imprescindível de estudo.

            Uma biblioteca representa uma história viva e está impregnada de marcas que, por sua vez, denunciam os interesses da pessoa que a possuiu, interesses responsáveis por sua formação intelectual, ou seja, pelo seu pensamento. A história da inteligência de uma cidade, de uma região, de um momento histórico, não pode prescindir dessas bibliotecas, documentos vivos a denunciar as origens desse pensar.

            Um sebo é, via de regra, confundido com depósito de papel velho. Como livros, para quem não tem intimidade com eles, representam exatamente isso, papel velho e inútil, são os primeiros a serem descartados. Uma biblioteca, temática ou de interesses variados, portanto, possui seu valor enquanto conjunto. Desmembrada, passa a não representar mais nada.    
            Acontece que, quando a proprietária do sebo, como é o caso desta que assina estas linhas,  eventualmente foi amiga do dono da biblioteca que lhe é ofertada, essa tarefa torna-se insuportavelmente dolorosa e desperta a aguda consciência da necessidade de preservar essa coleção, como documento de uma história recente, ainda por estudar.
            Abrir um livro e dar com uma dedicatória do autor ao amigo é abrir feridas na memória. Abrir um livro e dar com sublinhados e escritos na margem de suas páginas é (re)encontrar sua inteligência a marcar aquilo que desejava preservar na memória voluntária, instrumento eficiente aquando da necessidade de voltar a ela. Abrir um livro e dar com um envelope subscrito em suas páginas, uma pétala de flor, um ingresso de teatro, um bilhete de loteria, uma passagem de avião ou de trem, é trilhar caminhos percorridos por seu colecionador e identificar-se nele. Abrir cada um desses livros e sentir as digitais que em suas páginas foram deixadas é percorrer os caminhos daquela inteligência e de sua humanidade.
            A cada vez que um desses amigos se vai, fico aqui no meu canto a torcer para que a família não me procure, para que seja encontrado um destino para esse acervo pessoal. Desgraçadamente e com frequência é comum isso acontecer, pelos dois motivos citados (por ser livreira de livros usados e por ter sido amiga do dono do acervo).  É aí que começa a via crucis em busca de alguma instituição que se interesse em preservar esses livros e documentos e a triste constatação que não temos instituições apropriadas, não temos um Arquivo Regional, não temos bibliotecas temáticas, não temos interesse, não temos Institutos de Estudos abecedeanos... Os sindicatos, protagonistas de toda uma história que está para contar, não possuem um setor para armazenar sua própria memória, incluindo aí seus militantes. Os departamentos de memória municipais, quando existentes, louvando as honrosas exceções,  graças a funcionários capacitados e sensíveis que percebem a importância de preservar certos acervos, via de regra, não possuem suporte físico nem financeiro suficiente para abrigar e preservar condignamente esse material.
            No final do ano passado, durante o Seminário A Proteção do Patrimônio Cultural, realizado pelo Serviço de Memória de São Bernardo do Campo, tive a grata satisfação de ouvir a conferência do Prof. Paulo César Garcez Marines que, entre importantes reflexões, disse que "O ABC é um patrimônio de todos os brasileiros. A marca da indústria, a Vera Cruz, o Estádio Vila Euclides, a redemocratização... Não há nenhum lugar do país que não tenha consumido um produto ao menos produzido no ABC (Mercedes-Bens, ônibus e caminhões, brinquedos Trol, Porcelanas de Mauá, enfim... ". Disse ainda o conferencista que "as referências culturais precisam ser inventariadas e os Museus como lugar de reflexão para lembrar criticamente".
            Mas foi na abertura desse mesmo Seminário que ouvi, boquiaberta, o pronunciamento do Secretário Adjunto de Cultura da cidade dar as boas vindas aos participantes, dizendo que nada mais poderia dizer pois essa "não era sua área de especialização", como se patrimônio cultural fosse coisa apenas de "especialistas" e não" fizesse parte de nossas vidas, fronteira de ação social e política, suportes que nos definem como cidadãos", como bem salientou o competente conferencista.
            Nossas referências culturais estão ao deus-dará, nosso imaginário cultural jogado na lata do lixo, por pessoas que receberam cargos por vias políticas e que, via de regra, não sabem o que fazer com eles. Sua idéia de cultura é a mais simplória possível. Personalismos, gostos pessoais e achismos substituindo políticas de cultura.  Eventos, eventos, eventos... Balcão e agenda.
            Diálogo já, sobre este e muitos outros assuntos prementes. Como disse o prof. Paulo César naquele Seminário, há urgência em inventariar e tomar participativamente, estado e sociedade, pensando na pluraridade de sujeitos/cidadãos (etnias, religiões, profissões, modos de morar),  na pluraridade de tempos, de tipos e de bens culturais. 

3 comentários:

  1. Dalila, Muito bom! Alguém precisa gritar, eu sempre penso que voltamos à estaca zero e precisamos começar de novo será? Como, atualmente, não tenho acompanhado muito o assunto, fico em dúvida, mas dito por você com conhecimento, agora tenho certeza, tudo continua como no século passado.
    Parabéns e muito sucesso.
    Arlete

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  2. Antonio Possidonio Sampaio10 de maio de 2011 às 10:18

    Oportunìssima a advertência da Dalila. A rica memória resultante das lutas operárias e sindicais ocorridas na região do ABC nessas últimas décadas está mesmo se perdendo. Ou se perdeu, graças à incúria daqueles que deveriam preservá-la, como os trabalhadores metalúrgicos que com suas lutas de enfrentamento ao capital tornaram a região conhecida mundialmente. Talvez tenhamos a oportunidade de salvar o que ainda resta, quando da criação do Museu do Trabalho e do Trabalhador, que será inaugurado em São Bernardo do Campo em 2012. 0 projeto já existe. Será construído no antigo Mercadão, nas proximidades do Paço Municipal de São Bernardo. 0 alerta da Dalila está merecer um debate envolvendo toda a comunidade. Quem sabe o Consórcio Intermunicipal tope essa parada. Se não topar, resta a gente botar boca no trombone denunciando os omissos da sua própria história.

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  3. Comove ver/ouvir alguém como o Dr. Antonio Possidonia Sampaio ou apenas o nosso Possidonio, escritor notável, às vésperas de se tornar octogenário, manter esse entusiasmo eternamente juvenil, empurrando o comboio das utopias (porque ideologias não existem mais) serra acima. Quem sabe,possa alguém verdadeiramente jovem (em idade) possa contaminar-se e seguir-lhe os passos e o fervor. Tomara.
    dalila teles veras

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