quinta-feira, 22 de junho de 2017

Em defesa da participação da sociedade civil no COMPAHC-SBC


O Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de São Bernardo do Campo (COMPAHC-SBC) funciona desde 1984 como um “órgão de assessoramento e colaboração da Administração Municipal, em todos os assuntos relacionados com o patrimônio histórico-cultural, cabendo-lhe opinar sobre a inclusão de bens no patrimônio, fazer sugestões, emitir pareceres em pedidos de demolições e em qualquer expediente que verse sobre bens imóveis e móveis que tenham significação histórica e cultural para o Município”1.Esse conselho é responsável pela preservação de bens culturais significativos de São Bernardo do Campo como os Estúdios Vera Cruz, a Cidade da Criança e a torre da tecelagem Elni, traços da memória da industrialização e da modernidade vivenciada por toda a região metropolitana de São Paulo em meados do século XX. Criado no mesmo ano das Diretas Já, o próprio COMPAHC-SBC carrega em si a importância simbólica de ter se constituído como um espaço qualificado de participação da sociedade civil junto ao Poder Público ainda na vigência do governo militar.
 
Iniciativas como a da criação do COMPAHC-SBC inspiraram a Constituição Federal de 1988 de duas maneiras. Uma foi o reconhecimento da competência dos municípios para “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”2. Outra foi o reconhecimento de que “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”3. Nota-se que mesmo sendo o patrimônio cultural ainda uma responsabilidade do Poder Público, a Constituição reconhece o direito da população em participar das decisões relativas à sua preservação. Nesse sentido, ao inseri-lo como parte integrante das diretrizes gerais da política urbana, o Estatuto da Cidade determina que “Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania”4, definindo ainda expressamente os órgãos colegiados – como o COMPAHC-SBC – como instrumentos de gestão democrática da cidade.
 
Foi em consonância com os princípios democráticos previstos pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade que, após convocação e seleção criteriosa aprovada pelo COMPAHC-SBC que foi nomeada pela Portaria nº 9485 de 06 de setembro de 2016 da Prefeitura Municipal a composição atual do Conselho para o biênio de 2016 a 2018. Tal formação foi constituída em regime de paridade com representação de oito organizações da sociedade civil e de oito setores da administração municipal. Entre as organizações da sociedade civil figuram grupos de atuação significativa em São Bernardo do Campo, como o Movimento SOS Chácara Silvestre, o Grupo Cênico Regina Pacis e a Faculdade São Bernardo (FASB) ao lado de instituições altamente qualificadas como a Universidade de São Paulo (USP), a Associação Nacional de História (ANPUH) e o Centro Internacional para a Conservação do Patrimônio do Brasil (CICOP-Brasil), além do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Trata-se portanto, de um colegiado formado por representantes com notável conhecimento de causa e reconhecido mérito para deliberar sobre o patrimônio cultural bernardense.
 
Em maio de 2017, entretanto, os membros do COMPAHC-SBC receberam com grande surpresa e consternação a notícia da aprovação da Lei Municipal nº 6550/20175 pela Câmara Municipal de São Bernardo do Campo a partir de projeto de lei proposto pelo executivo municipal. Além de dissolver de imediato a última formação do Conselho6 legalmente nomeada antes do final de sua gestão, tal lei fere gravemente o princípio da paridade ao reduzir para apenas quatro as vagas de representantes da sociedade civil no COMPAHC-SBC frente a oito representantes da Prefeitura Municipal e um da Câmara Municipal7. Submete ainda todas as atividades do COMPAHC-SBC à manifestação prévia das secretarias de governo8, e a escolha do presidente e do vice-presidente do Conselho à escolha do prefeito9. Dessa maneira compromete o poder de decisão da sociedade civil no colegiado, sempre em minoria nas votações, e submetendo sua atuação sempre à aceitação tácita do previamente estabelecido pelo governo municipal, esvaziando assim a própria natureza do COMPAHC-SBC como espaço democrático de participação social nas decisões do poder público que dizem respeito ao patrimônio cultural bernardense.
 
Ora, de fato a atualização da legislação é uma demanda do COMPAHC-SBC desde ao menos 2006 nunca atendida pela Prefeitura e pela Câmara Municipal uma vez que a legislação sobre o patrimônio cultural em São Bernardo do Campo, criada em 1984, está desatualizada em relação à Constituição de 1988 e ao Estatuto da Cidade. No entanto, causa grande estranhamento o fato de que a Lei 6550/2017 foi aprovada às pressas à revelia do COMPAHC-SBC, sem consulta aos conselheiros, e sem aviso prévio. Ainda mais suspeito é o prazo de sua aprovação apenas uma semana após a 198a Reunião Ordinária do Conselho em que foi discutida uma grave intervenção na Cidade da Criança sem a devida apreciação e autorização pelo colegiado. Trata-se da construção de uma nova edificação no bem tombado para sediar uma Mini Fazenda Educativa, um projeto no mínimo dispendioso uma vez que os esforços da Prefeitura bem poderiam se voltar para obras de conservação e manutenção das edificações já existentes e oficialmente protegidas pelo tombamento. Vale mencionar que o COMPAHC-SBC e o governo municipal já vinham alcançando bom entendimento mútuo no caso da reforma da Praça Lauro Gomes, outro bem público tombado, para garantir a preservação dos aspectos de reconhecidos valores culturais, como seu desenho, seus bancos e suas árvores. Não havia, portanto, desconhecimento ou qualquer outra justificativa para que as obras na Cidade da Criança fossem realizadas sem conhecimento do COMPAHC-SBC, conforme a legislação vigente.
 
Ao que parece, o Prefeito Orlando Morando e os vereadores de São Bernardo do Campo fazem eco ao processo de desautorização e desmonte dos espaços de participação social levado a cabo na esfera federal pelo governo de Michel Temer à Presidência da República, como é o caso do decreto presidencial de 26 de abril de 2017 e a Portaria 577 do Ministério da Educação (MEC) retirando poderes e autonomia do Fórum Nacional de Educação, como a coordenação da Conferência Nacional de Educação (CONAE) e reduzindo drasticamente a representatividade da sociedade civil no Fórum. Outro exemplo é o Decreto 9.076 de 8 de junho de 2017 que tira poderes do Conselho Nacional das Cidades como o de eleger os membros da próxima gestão. Vale lembrar ainda a Medida Provisória nº 728 de 23 de maio de 2016 assinada por Michel Temer, na tentativa de esvaziar o poder de ação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), instituição pública octogenária cuja instância máxima de decisão é também um conselho participativo. A respectiva medida provisória previa a criação de uma “Secretaria Especial de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” sem função definida mas que certamente se sobreporia ao IPHAN especialmente nas decisões sobre licenciamento de obras em bens tombados e seu entorno10. Devido à forte pressão do Conselho Consultivo do IPHAN e abaixo-assinado apresentado por diversas lideranças em especial da comunidade acadêmica a medida foi brevemente revogada.
 
Em todos os casos acima as organizações da sociedade civil que ocupam esses espaços de gestão democrática têm resistido e defendido os princípios constitucionais de participação social junto aos poderes públicos. Também os conselheiros do COMPAHC-SBC entraram com ação no Ministério Público em defesa da participação efetiva da sociedade civil na preservação do patrimônio cultural bernardense. Ainda assim, é preciso que a população resista, se mobilize e pressione os representantes eleitos dos poderes públicos não só em defesa do trintenário COMPAHC-SBC mas de todos os órgãos e espaços democráticos pelo livre exercício de direitos e de cidadania. São Bernardo do Campo, e toda a região do ABC Paulista, já foi um palco significativo de movimentos sociais pela redemocratização, é preciso que continue defendendo sempre os avanços do próprio estado democrático de direito que ajudou a construir.

 

Marcelo de Paiva 

Renato Alencar Dotta 

Simone Scifoni  

Maria Sabina Uribarren




1- Lei Municipal nº 2608 de 05 de junho de 1984.
2- Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Artigo 30º, inciso IX.
3- Idem, Artigo 216º, § 1º.
4- Lei Federal 10.257 de 10 de julho de 2001.
5- Disponível em https://leismunicipais.com.br/a2/sp/s/sao-bernardo-do-campo/lei-ordinaria/2017/655/6550/lei-ordinaria-n-6550-2017-dispoe-sobre-o-patrimonio-cultural-do-municipio-o-conselho-municipal-do-patrimonio-historico-e-cultural-de-sao-bernardo-do-campo-compahc-sbc-e-da-outras-providencias
6- Lei Municipal nº 6550 de 11 de maio de 2017, artigo 25º.
7- Idem, artigo 7º.
8-  Idem, artigo 6º
9-  Idem, artigo 9º
10- Um manifesto em defesa do IPHAN foi publicado no Portal Vitruvius, disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/16.105/6052

Um comentário:

  1. LEI Nº 6565, DE 22 DE JUNHO DE 2017


    Altera o art. 7º e o caput do art. 17 da Lei Municipal nº 6.550, de 11 de maio de 2017, que dispõe sobre o patrimônio cultural do Município, o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de São Bernardo do Campo - COMPAHC-SBC, e dá outras providências.
    SÃO 9 REPRESENTANTES DA PREFEITURA E 7 DA SOCIEDADE CIVIL, APESAR DA ALTERAÇÃO ELES CONTINUAM COM A MAIORIA...

    ResponderExcluir

Se você não tem cadastro no Google, pode deixar seu comentário selecionando a opção Nome/URL no campo Comentar como logo abaixo.