quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Um resgate necessário


Julio Mendonça

          O texto que publicamos a seguir foi escrito por Berenice Baeder para apresentar o projeto de construção e publicação de um livro sobre o grupo Teatro-Circo Alegria dos Pobres, criado e coordenado pela professora e atriz Beatriz Romano Tragtenberg (a Bia) em 1973 e atuante até meados dos anos 80.
          O Teatro-Circo Alegria dos Pobres foi criado por Bia e um grupo de alunos na E.E.”Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto”, no Butantã, São Paulo. Numa época marcada pelo obscurantismo da ditadura militar, o qual se refletia no ambiente escolar, o grupo, apoiado nas concepções pedagógicas de Célestin Freinet (1896-1966), procurava contribuir para uma escola mais democrática e criativa.

         Mas, deixo o restante da introdução à história desse importante grupo cultural para o ótimo texto da Berenice. Acrescento, apenas, que, tendo eu também participado dele, recentemente pude retomar contato e rever a maioria dos ex-companheiros e companheiras (alguns, eu não via há mais de 30 anos). Ao final, peço licença para publicar um poema que escrevi sobre a experiência do Teatro-Circo.

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Um pouco do texto já escrito do livro[1]
Berenice Baeder

In media res

[...] Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra [...]
Drummond

Dia de aula. Faltam alguns segundos para o sinal do intervalo. Há silêncio e ausência nos corredores da escola estadual Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto. Tudo é ordem e normalidade, até que o som estridente e monótono da campainha avisa, inadvertida, algo insuspeitado.
Quando soou o ardido som da sirena da escola, os alunos que vinham do último andar foram surpreendidos por um círculo de atores que já encenavam, com roupas coloridas, tridentes e tudo o mais, um dos três textos de cordel que seriam encenados nesse dia na escola. O grupo bloqueava a passagem dos alunos que, como estouro de boiada, só queriam uma coisa: chegar ao pátio da escola. Era impossível não parar para ver o espetáculo. Mais abaixo, quem saísse das salas daquele andar dava de cara com outro grupo posicionado estrategicamente, a falar, gesticular, rir e a provocar todo mundo. Ali a peça também começara antes mesmo da saída dos alunos para o intervalo. Ainda um terceiro grupo se posicionou no meio do pátio; assim, quem porventura tivesse conseguido furar o cerco e passado pelos dois outros grupos e descido para o pátio fatalmente assistiria ao cordel deste último grupo. Era um tal de trocar de roupa, colocar adereços e montar novas personagens, tudo diante de um público absolutamente impactado, incrédulo de que aquilo realmente pudesse estar acontecendo na escola. Assustados, no princípio, mas depois muito curiosos, eufóricos, os alunos corriam, disputavam um lugar em cada peça, correndo pelas escadas, pelos corredores, para não perder nenhuma delas. Foi uma correria danada, uma alegria, uma liberdade que havia muito não se experimentava nem na escola, nem fora dela.
Três andares na escola, três peças, três tropeços simultâneos – no caminho havia três pedras –, a parada para pensar, refletir, se divertir, sorrir!
Aí começava o trabalho do grupo independente de teatro, ou teatro de periferia, chamado “Teatro-Circo Alegria dos Pobres”.
Era o sombrio 1973, um dos cinco tenebrosos anos da ditadura militar sob o governo Médici (1969-1974). Apesar disso, aproveitando-se de um “cochilo da violenta intransigência”, alguns professores daquela escola transformariam por completo o destino de um grupo de jovens, criando na história daqueles tempos uma porta, uma brecha, uma real resistência pedagógica que definitivamente abririam a escola à vida.
Grande parte dos brasileiros queria, exigia mudanças. A educação adquiriu uma importância muito grande, aliás, desde a Primeira Guerra Mundial. Célestin Freinet, que foi combatente nessa mesma guerra e feriu-se gravemente no pulmão a ponto de não poder voltar para o front, elaborou uma nova pedagogia, mais solidária e fraterna, mais generosa e respeitosa para com as crianças do que aquela “escolástica”, que era o nome do autoritarismo militarizado imposto pela geração de velhos mestres orgulhosos e sádicos, empurrando aos alunos uma erudição de “nomes, datas e guerras”, dando vazão apenas à memorização na educação. Ele dizia: “há uma fossa entre a escola e a vida”.
O pedagogo Célestin Freinet foi alicerce e impulso para os trabalhos desenvolvidos pelo grupo desde o seu começo.


Um cochilo da ditadura
A escola de maneira geral, e mais especificamente a EE Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto, onde nasceu o grupo, estava vivendo intensa pressão disciplinar. Um menino não podia pôr a cara fora da sala de aula que do fundo do corredor o diretor, professor de história, conservador e triunfante apoiador da ditadura, dava gritos de ameaças de espantar qualquer um.
Nas mudanças que a Secretaria da Educação fez nos anos 1970, os professores primários é que passaram a dirigir as escolas que também ofereciam os cursos secundários, hoje os três anos finais do Ensino Médio. Só que o nível desses puxa-sacos, como eram conhecidos, era de sofrível a ruim, a ponto de os dois últimos diretores que passaram pela escola (inclusive o celerado professor de história) serem expulsos por todos os professores, por roubarem a Associação de Pais e Mestres e assediarem as alunas (o professor de história teve um filho com uma aluna), molestando-as sexualmente.
Foi aí que, lendo as leis relativas ao cargo de diretor, descobriu-se que a Congregação de Professores, composta por professores concursados, tinha o direito de eleger um de seus pares para ser diretor.
A ditadura cochilou e não revogou esse item! A submissão dos professores e dos brasileiros em geral foi tão grande que não foi preciso nem tirar esse direito democrático dos professores do ensino público.
Os professores elegeram então a colega Adib Abujamra Ferreira, professora de Educação Física, culta e inteligente, que apesar de estar a dois anos de sua aposentadoria desejava ardentemente “fazer alguma coisa” pela escola, o que, aliás, sempre havia feito no período democrático, antes de 1964.

Do projeto do livro
Esse curto excerto do livro mostra como começou o grupo, foco do projeto. A proposta do volume é acompanhar o percurso de oito anos de existência desse grupo independente surgido numa escola estadual, o contexto político em que atuou e como e em que bases eram desenvolvidos seus trabalhos: a pedagogia que deu sustentação e inspiração ao grupo, como e quem fazia figurinos, cenários, ensaios. Como eram feitas e o porquê das escolhas dos textos, das músicas; como foi o processo de realização do espetáculo de criação coletiva e de que maneira eram encaminhadas as discussões acerca de tudo isso.
O relato das apresentações do grupo também fará parte do livro, porque o lugar onde eram feitas também dizia muito sobre as escolhas e visão de mundo das pessoas que dele faziam parte: as peças eram apresentadas em escolas (de periferia ou não), espaços de associações de bairro, unidades da antiga FEBEM (atual Fundação Casa) da capital e do interior, em vigílias de movimentos reivindicatórios de sindicatos, em mostras de teatro de cidades do interior e da capital, no duro chão de terra batida dos espaços das comunidades da capital e em grandes praças públicas da cidade de São Paulo, como a Praça da Sé e São Bento.
A importância de falar dessas apresentações está sobretudo no fato de que, depois dos espetáculos (quando era adequado, quando dava), o grupo promovia debate, de onde saíam novas ideias e importantes discussões acerca do momento político, questões de preconceito e tantos outros pontos, além de haver o reconhecimento de onde o grupo se apresentava, do seu espaço sociocultural e suas profundas contradições. Era um dos momentos de troca e de crescimento mútuo que o trabalho proporcionava.

Da parte material do livro
O texto do livro será uma espécie de narrador, que vai alinhavar, num tom jornalístico, portanto fluido e objetivo, as diferentes escrituras e linguagens que constituirão o corpo do livro: depoimentos pessoais, entrevistas, respostas aos questionários, e também passagens focadas especificamente em um assunto.
Esse texto-narrador obedecerá à ordem cronológica dos trabalhos realizados ao longo da história do grupo:
·        Início do grupo com o teatro-relâmpago, de vários autores (do primeiro para o segundo semestre de 1973)
·        Semana de Arte na Escola (segundo semestre de 1973)
·        A Incelenças, de Luiz Marinho (1973-1974)
·        A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna (1975-1978)
·        O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1974-1976)
·        Tocar o Impossível Chão, criação coletiva do grupo (1977-1978)
·        A Festa do Pastoril Conta Cordel e Mamulengo, domínio da cultura popular brasileira (1977-1979)
·        O Último Xaxado em Macaxeira, coletânea de vários cordéis (1979-1981)
O livro também contará com a reprodução de cordéis, literatura ainda pouco conhecida ou compreendida em muitas regiões do país, assim como textos criados e encenados pelo grupo.

Da linguagem visual
Rica e variada iconografia será agregada ao texto principal de maneira orgânica, isto é, de modo que não apenas ilustre o texto, mas que nele construa, por si, sentidos.
Além de fotos, borderôs, pinturas, filipetas e xilogravuras, o livro será acompanhado de um CD com as músicas dos espetáculos, mais um DVD com cenas divertidas, e/ou importantes do ponto de vista estético e entrevistas. Esse DVD será uma forma de mostrar, por exemplo, o que é mamulengo, e de onde vieram e como foram criados tantos ricos elementos do folclore nordestino incorporados pelo grupo. Terá também um curto filme sobre a última peça encenada pelo Teatro-Circo Alegria dos Pobres: O Último Xaxado em Macaxeira, além de material iconográfico que não tenha constado do corpo do livro, mas que, pela sua importância, deve ser mostrado.

Por quê?
Finalmente, as razões que justificam a feitura de um livro como esse são, além de fazer conhecer o trabalho – que teve como base a arte e a educação – e seu contexto, e também de registrá-los, mostrar que é possível mudar, criar, reinventar a escola, ou o espaço que for, sobretudo num regime político democrático, e solidariamente oferecer sugestões de um dentre os muitos modos de fazê-lo, pois “Apesar de tudo, conseguimos!”

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1973                                                                                         Julio Mendonça
Aos amigos e amigas do Teatro-Circo Alegria dos Pobres


Faltava o chão, faltava a palavra, faltava
a falta.
Sob a sombra do impávido colosso
havia que amar e deixar de amar os
que não amavam
a arte civil de ser submisso às leis
incivis.

“Ninguém sente falta do que perdeu”

Na escola,
diziam que sabiam o que devíamos saber:
os hinos, os símbolos,
a virtude, o civismo,
o cinismo,
a sevícia,
afivelados às grandes metáforas,
adulando a ignorância útil de cada dia.

foi quando o teatro      a música
- isto é      as mentiras necessárias
em meio
                     a tanta verdade inútil –
redescobriram    
                                   a alegria dos pobres
que não sabem
                                          mas des
cobrem
ninguém
                       sente falta
                                                   do que não conhece
começávamos a querer
                                                       arrombar a metáfora
                                                                                                       tocar o impossível





[1] Sobre o pedagogo Célestin Freinet e o “cochilo da ditadura”, o texto produzido teve como base uma transcrição de depoimento em vídeo da professora Beatriz Tragtenberg feita pela autora deste texto.

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