segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A precariedade do debate cultural

Julio Mendonça


O recente lançamento do filme “Uma Noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil, é mais uma oportunidade para trazer à luz a questão do debate público sobre cultura. O filme é um documentário que aborda o impacto da noite de encerramento do Festival de MPB da Record de 1967, na qual concorriam músicas dos músicos-compositores que, desde então, mais influenciaram nos rumos da música e da cultura brasileiras: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Roberto Carlos. O evento, transmitido ao vivo pela TV, teve grande audiência e repercussão. O principal motivo para isso foi a chamada “guerra da canção de protesto contra a guitarra elétrica”, esta vista por parte do público como símbolo da dominação capitalista.

O episódio provoca, ainda hoje, nostalgia e saudosismo de uma época em que muitos tinham o sentimento de participar intensamente do debate sobre os rumos da cultura. Mas, como dizia Caetano numa canção (“Saudosismo”) também do período – uma reinterpretação da bossa nova de Tom e Vinícius: “chega de saudade”. O que importa é nos perguntarmos por que é difícil para nós, hoje, esse sentido de participação.

As razões são diversas e não poderíamos esgotá-las neste texto. Mas, se queremos, a partir da comparação com 67, pensar alternativas para um novo impulso ao debate público sobre cultura, creio que podemos começar por apontar algumas diferenças entre 40 anos atrás e hoje.

No que diz respeito ao Brasil, o de então vivia um momento de expansão da industrialização, a aceleração do processo de concentração populacional nas grandes cidades, crescimento e interiorização das telecomunicações e fortalecimento da classe média urbana. Entretanto, a indústria cultural ainda não tinha se instalado plenamente, tanto que o grande debate daquele festival sobre a presença das guitarras na MPB estava apontando para um fato que, pouco depois – a partir da chegada definitiva da indústria cultural nos anos 70 –, iria se tornar corriqueiro e visto como natural: a importação de tendências e modelos culturais produzidos nos países hegemônicos. E por último, mas não menos importante, o país vivia sob uma ditadura prestes a atingir o ápice do fechamento e da repressão.

A ameaça à liberdade de expressão que o país viveu em 67 e que teve como desfecho a censura a partir do ano seguinte, certamente foi um dos maiores estímulos para aquele momento privilegiado de debate e criação. Hoje estamos distantes disso e vivemos em condições que permitem expressão de pensamento e de criação sem obstáculos intransponíveis. O país mudou muito e talvez, no campo da cultura, a principal diferença seja, mesmo, a forte presença, hoje, da indústria cultural que faz do Brasil um dos maiores consumidores de produtos culturais no mundo, completamente inserido no processo de globalização que teve, justamente, nos anos 60 seu marco principal. Mas, também passamos a conhecer um pouco mais a nossa diversidade cultural, embora o mercado não a reflita.

As maiores diferenças estão no contexto global (o qual, claro, influencia o local). Antes de tudo, a década de 60 foi um período de intensa criação cultural e participação política, entre outras razões, porque nela os jovens conquistaram maior autonomia (que seria, depois, instrumentalizada pela indústria cultural). A partir dela, as tecnologias e a revolução da informação expandiram os meios de produção, circulação e troca cultural. Essas tecnologias trouxeram a expansão das relações sociais pelo tempo e espaço e aprofundaram a interconexão global (principalmente com o advento das tecnologias digitais). Passamos a viver uma compressão do espaço-tempo. A globalização da economia e da comunicação investiu na tendência à homogeneização cultural, com a criação e circulação de produtos culturais estandartizados. A redução da média de horas dedicadas ao trabalho e o aumento do tempo de ócio e de sua importância para o sistema e o crescimento do setor econômico dos serviços também são responsáveis pelo que se chama, agora, de “centralidade da cultura”. A cultura penetra em cada recanto da vida social, com imagens, sons e textos nos chamando para fazer parte do circuito mundial do consumo.

Se a globalização cria processos e produtos homogeneizadores da cultura, por outro lado, a própria lógica novidadeira do consumo demanda a criação de produtos culturais diversificados. Por isto mesmo, há espaço para estimular a produção cultural local. É claro que esse espaço será maior para produtos que se adequem melhor à demanda do mercado. A idéia da centralidade da cultura contrasta, é claro, com a percepção da dificuldade de acesso da maioria aos meios para manifestar-se culturalmente.

Uma das conseqüências mais importantes do impacto da centralidade da cultura, associada à afirmação internacional dos direitos humanos – que é a afirmação do indivíduo frente ao Estado –, é a chamada falência da política”: crise de desengajamento, decepção com as instituições democráticas formais, busca de vias alternativas e de maior autonomia. Nem a vida política, nem o desenvolvimento econômico, podem assegurar a integração social. A cultura pode cumprir este papel?

Se a cultura adquiriu uma condição de centralidade e a via da participação política tradicional faliu, por outro lado, como dar sustentação à vida cultural que não se adéqua à circulação de produtos culturais que interessam de imediato ao mercado?

Na 29ª Bienal de Arte de São Paulo, que está acontecendo agora, podemos nos deparar com uma frase provocadora de Jean-Luc Godard (um dos principais participantes da revolução cultural daqueles longínquos anos 60): “Cultura é a regra; arte é a exceção”. Esta é uma linguagem que aqueles jovens entendiam bem: concisa e direta. Linguagem de manifesto. A cultura tende à acomodação das diferenças, à sua superação em nome daquilo que (ao menos, é o que sempre esperamos) nos aproxima, nos civiliza, enquanto a arte desestabiliza, desequilibra, singulariza, inquieta e não nos deixa acomodar.

A arte teve um papel determinante nos acontecimentos de 67/68 e não foi à toa que esse papel esteve associado àquilo que foi chamado de “contracultura”. Mas a arte, hoje, também está condicionada às necessidades de comunicação neste mundo interconectado e a comunicação é um espaço de competição. Os artistas atuam num ambiente muito mais competitivo que aquele dos anos 60. Muito mais conectados, mas também e paradoxalmente, muito mais “cada um no seu quadrado”. Por isto, participam pouco do debate público sobre cultura.

O debate está vivo. Nas condições atuais, ele sobrevive de modo difuso nos tão diversos meios de comunicação e criação disponíveis, nas franjas, frestas e links do sistema. Na internet e nas ruas. Precariamente.

Este blog – resolvemos criá-lo porque vínhamos nos reunindo e debatendo presencialmente e percebemos que era preciso ampliar o alcance da nossa precariedade.

8 comentários:

  1. Parabéns, Júlio
    você inaugura este blog como um oboísta a dar o "tom" para os músicos na abertura do concerto. Este oportuno texto, reflete, instiga e provoca. Espero que essa reflexão/provocação surta o efeito por todos nós desejado para este blog e que todos os instrumentos desta grande orquestra, dissonantes, sim, possam ser ouvidos, discutidos, apreciados e, por fim, aplaudidos (quem sabe?).
    Fique com o abraço (extensivo a todos os colegas desta equipe) da companheira de ofício e de utopias (sim, ainda...)
    dalila teles veras

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  2. Parabéns, Julio, Dalila e companheiros/as do Fórum.

    Pela iniciativa de nos proporcionar, a todos os amantes e militantes da cultura, mais esse espaço de debates e reflexão por meio deste blog.

    Com certeza será um importante instrumento no fortalecimento do Fórum e dos movimentos culturais no ABC.

    O texto inicial do Julio nos estimula ainda mais.

    Abraços,

    Marcelo Dino Fraccaro

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  3. Parabéns a todos pela iniciativa de compartilhar. Para os que não puderem estar presentes nas reuniões, este espaço traz a oportunidade de conhecer e participar dos debates sobre os rumos da cultura na nossa região, e porque não, do nosso país.

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  4. o que dizer? parabéns a todos os pais deste projeto que já deu certo, pois é mais um instrumento aberto a idéias e opiniões e atende aos impossibilitados de participação presencial. como disse 'a Dalila, sem desculpas.

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  5. parabéns a todos! foi muito bom participar da reunião na segunda e encontrar tantas possibilidades em cada um dos presentes. grata surpresa! acho que cabe agradecer pela "resistência" e pela adoção de novos instrumentos para seguimento dos debates.

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  6. Prezada Dalila
    Fico sempe feliz com iniciativas como a de vocês.
    O lugar escrito é um 'país' que buscamos,
    que nunca será a Pasárgada de Manuel Bandeira.
    Mas se ampliarmos nossa cidadania, essa palavra poderá ter
    um dia a mesma conotação que tem para língua francesa:
    vilarejo ou pátria, o lugar que escrevemos,
    onde nos inscrevemos.
    Um abraço amigo.
    Everardo Norões (Recife, PE)

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  7. Gostei de navegar pelo blog "O lugar escrito" e conhecer a militância intelectual desse grupo de debates, que se reúne na Alpharrabio. Bom ficar a par de novidades da área na coluna "Acontece" de
    Hildebrando Pafundi. Interessantes as considerações sobre o filme "Uma Noite em 67", de Calil, homem dedicado e testemunha da cena cultural de São Paulo.
    Abraço fraterno. Raquel Naveira, SP www.raquelnaveira.com.br

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  8. Pessoal e especialmente Júlio!
    Adorei o texto. É exatamente assim que penso com relação àqueles que ficam em seu quadrado esperando que a globalização passe à sua porta e os conectem de fato ao mundo.
    O texto que breve lhes encaminharei fala destas conexões.
    Parabéns pelo espaço!

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